A empresa já foi considerada culpada pela justiça, nos últimos dois meses, em duas instâncias diferentes.
Em agosto de 2018, um tribunal de São Francisco (Califórnia) condenou a Monsanto por ter “contribuído consideravelmente” para o surgimento do LNH – Linfoma No Hodgkin, um câncer linfático sem cura, no jardineiro Dewayne Johnson.
Na semana passada, a juíza federal Suzanne Bolanos ratificou a decisão.
Tentando minimizar o alcance da decisão, a Monsanto e vários meios de comunicação, ligados de alguma forma ao agronegócio, deram ênfase em um só aspecto da decisão: a redução dos montantes das indenizações que a empresa deve pagar.
A sentença de agosto de 2018 foi clara ao estabelecer – baseando-se em documentação especializada e em depoimentos – que o glifosato, o princípio ativo do Roundup e do RangerPro foi o causante do câncer de Johnson, diagnosticado em 2014.
O jardineiro de 47 anos – paciente com prognóstico de não mais de dois anos de vida – tinha utilizado sem precaução nenhuma esses produtos durante os anos de 2012 e 2014, nos jardins de escolas de uma pequena região da Califórnia.
A Monsanto – dizia a sentença – atua com “malevolência” porque sabe há muito tempo – documentos internos filtrados da empresa demonstram isso – da existência de efeitos negativos no uso do glifosato para a saúde dos seres humanos e do ambiente e que, mesmo ciente, a empresa decidiu ocultar tais informações e manipular os cidadãos, garantindo a eles exatamente o contrário.
Essa decisão judicial é considerada histórica, por se tratar da primeira vez no mundo em que a justiça vincula o glifosato com doenças adquiridas por pessoas que manipulam ou que têm contato com o produto. Também foi a primeira em vez que foram aceitos documentos contradizendo a inocuidade apresentada pelos relatórios da empresa.
Em outubro de 2018, a juíza Bolanos ratificou os fundamentos da sentença, reduzindo de 289 a 78 milhões de dólares o valor do montante a ser pago pela Monsanto por danos causados.
Porém, negou-se à Monsanto a possibilidade de abrir um novo processo.
A Monsanto – ou a Bayer, empresa alemã que comprou a empresa norte-americana – tem outros milhares de processos em andamento em todo o planeta.
Tanto o contexto atual, como a sentença do tribunal da Califórnia, mostra uma mudança na situação, deixando de ser favorável para a Monsanto.
A transnacional tem umas 8.700 ações contra ela, abertas só nos Estados Unidos. Na França outros mais.
Para dez dessas ações norte-americanas a data da audiência já está marcada e serão em 2019 e 2020 – e pelo que tudo indica a empresa será novamente condenada.
Alberta e Alva Pilliod, ela de 74 anos e ele de 76, deveriam estar entre os primeiros em levar a Monsanto outra vez ao tribunal. Ambos sofrem de diferentes formas do LNH. Para os médicos de ambos os pacientes, foi o uso prolongado do Roundup no jardim de sua casa o causante do surgimento do Linfoma No Hodgkin.
Seus advogados pediram, pela gravidade do caso e idade das vítimas, que o processo iniciasse o mais rápido possível. A empresa se negou, argumentando que os dois idosos não estão mais doentes, coisa que os especialistas desmentiram.
Outro que espera declarar rapidamente é John Barton, um granjeiro da Califórnia que em 2015 também foi diagnosticado com um LNH, por usar de forma prolongada e sem precauções o Roundup.
Barbara Broonks, viúva de Dean Brooks, agricultor que morreu em 2016, seis meses depois os médicos lhe diagnosticarem câncer linfático, está nessa lista. A causa é sempre a mesma: o uso do glifosato.
Brooks pensa que se os tribunais forem imparciais e fizerem bem o seu trabalho, como no caso de Dewayne Johnson, a empresa Monsanto nunca mais poderá ganhar um processo deste tipo.
“O Roundup é como um serial killer”, comentou o jornal inglês The Guardian (09-10-18).
A sentença de Bolanos “é um importante sinal de alarme para a empresa”, disse para o The Guardian Jean M.Eggen, professora emérita na Faculdade de Direito da Universidade de Widener.
São muitos processos em um só ano, o que permitirá que os “demandantes apresentem perante os jurados provas importantes ainda desconhecidas”, disse a advogada Aimee Wagstaff.
O jornal britânico The Guardian trouxe à tona o fato de a revista científica Critical Reviews in Toxicology ter, no final de setembro de 2018, expressado sua “preocupação” com o fato de muitos estudos que garantem a inocuidade do glifosato terem contado com a “participação ativa” da Monsanto (em outras palavras, manipulação de dados).
Várias dessas análises tinham sido abundantemente utilizadas pela empresa para criticar a imparcialidade e a probidade da decisão de 2015 da Organização Mundial da Saúde ao incluir o glifosato na lista de produtos cancerígenos para os seres humanos.
Lars Noah, professor de direito da Universidade da Flórida, acredita que no longo prazo, graças às sentenças que acarretarão na perda de muito dinheiro para a empresa, e graças ao fato de suas manipulações e mentiras estarem sendo desmascaradas, a Monsanto se verá obrigada a entrar em acordos extrajudiciais com os seus demandantes e a incluir advertências da periculosidade de seus produtos nas próprias embalagens.
Ainda que seja como estratégia de redução de danos, a empresa está recebendo, disse ao The Guardian, “um chamado de atenção” porque a forma com que estão atuando “não é realista”.
A quase totalidade dos processos previstos acontecerão em países desenvolvidos, e não na América Latina, onde o Roundup é utilizado em plantações de transgênicos produzidos com sementes patenteadas pela Monsanto e por outras transnacionais do agronegócio, sem haver nenhuma autoridade aparentemente preocupada com isso.
Na Argentina, um dos países mais “glifosateados” do planeta (são 200 milhões de litros de glifosato por ano, aplicados em 28 milhões de hectares), aguarda-se ainda a data do processo pela contaminação coletiva denunciada há vários anos por vizinhos do bairro Ituizaingó Anexo, na província de Córdoba.
Em Ituizaingó Anexo há uma associação local – apoiada pela Rede de Médicos de Bairros Fumigados e equipes universitárias – que documentou casos gravíssimos em dezenas de vizinhos, entre eles muitas doenças graves e malformações fetais.
Pouco depois da primeira sentença do caso Johnson, veio a falecer na Argentina Fabián Tomasi.
Fabián Tomasi, com 53 anos e pouco mais de 30 quilos, morreu de câncer por estar exposto a diversos agrotóxicos, entre eles o glifosato, com o qual trabalhava para uma empresa de fumigação de Entre Ríos, província argentina.
Tomasi tinha se convertido atualmente num emblemático ativista denunciante dos produtos e das metodologias da Monsanto e de seus pares.
Há exatamente dois anos, em outubro de 2016, Damián Verzeñassi depôs na Haia, perante o Tribunal Monsanto, que terminou condenando a transnacional por “crimes contra a humanidade”.
Diretor do Instituto de Saúde Socioambiental da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Rosário, Verzeñassi dirigiu o projeto “Acampamento Sanitário”, que realizou uma série de estudos em 27 regiões de quatro províncias argentinas, lotadas de produções transgênicas tratadas por glifosato.
Sua equipe examinou quase 100 mil habitantes dessas regiões (96.874 para ser exato), e descobriu que a região apresentava certos tipos de câncer e outras doenças em taxas muito mais elevadas se comparadas com outras regiões do país.
No Paraguai foram denunciados casos similares. “Vivemos em uma situação de guerra química, se considerarmos que nos últimos 20 anos cerca de 50 milhões de litros de agrotóxicos foram pulverizados em enormes plantações e em leitos de água, e se considerarmos também que foram desmatados mais de 5 milhões de hectares de florestas”, afirmou o ambientalista paraguaio Ernesto Benítez para a publicação Noticias Aliadas (NA, 15-10-19).
Nas regiões pulverizadas com agrotóxicos do país – e são muitas – “vem aumentando o número de mortes por problemas cardiovasculares, seguidos por câncer, podendo estar associadas aos desequilíbrios produzidos pela má alimentação e pelos alimentos contaminados. Ambas consequências de um desenvolvimento produtivo baseado na destruição das florestas e na exposição aos agrotóxicos.
Marta Figueredo, dirigente da Organização de Luta pela Terra (OLT), mora há sete anos no Assentamento Suíço Kue, departamento de Canindeyú.
Desde então, declarou para a publicação Noticias Aliadas que é testemunha de como as terras ocupadas pelas 350 famílias que ali vivem são constantemente pulverizadas com produtos à base de glifosato.
“Em três ocasiões foram feitas denúncias nas unidades de saúde, mas nunca são atendidas pelas autoridades sanitárias, porque são arquivadas”, denunciou.
E agregou: “Os mais prejudicados são os vizinhos dos limites entre as plantações de soja porque os responsáveis não respeitam as resoluções e decretos que estabelecem uma área de segurança de 100 metros e barreiras vivas de proteção”.
No Paraguai, de acordo com a organização Base Investigações Sociais, o glifosato é utilizado em uns 3,5 milhões de hectares plantados com soja transgênica, uma enormidade.
Para Joel Filártiga, um alergista-imunologista de 88 anos, que há décadas analisa os efeitos da contaminação por praguicidas e herbicidas, o seu país é “silenciosamente o país mais contaminado” por esses produtos e que para enxergarmos isto, basta vermos o “o aumento de casos de mortes de peixes, de crianças com malformações, de alergias severas, de doenças nos rins”.
Rafaela Benítez Leite, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Assunção, vem levando a cabo pesquisas científicas sobre a relação entre a exposição aos agrotóxicos e o dano genético em crianças.
“Os agroquímicos – declarou a médica para Notícias Aliadas – podem ter um efeito imediato, desde sintomas leves, como dores de cabeça, até causar lesões na pele, problemas respiratórios com convulsão, perda da consciência, encefalites, e até a morte, dependendo da quantidade e do grau de exposição e classificação do produto”.
Mas, nada disso tudo foi tratado pela justiça do Paraguai, um país onde a “imbricação entre o agronegócio e os poderes fáticos chega a níveis insólitos”, afirma insistentemente Francisco de Paula Oliva, o “Pai Oliva”, um padre jesuíta espanhol já bastante idoso e que há tempos vive em bairros da periferia de Assunção, onde todos estão expostos às pulverizações.
Em alguns setores das sociedades latino-americanas há um certo avanço na compreensão desta problemática, porém até que as próprias vítimas não comecem a reagir – e um bom exemplo são as associações argentinas – não haverá grandes avanços, disse Pai Oliva.
“As transnacionais do agronegócio – afirma o Pai Oliva – são mais poderosas que muitos estados e têm interesses que estão alinhados aos interesses dos mais poderosos. Sem ninguém que as denuncie e ninguém que as combata, não cederão jamais”.