No Brasil, a detenção de dois dos assassinos da ativista Marielle Franco foi recebida no mês passado como uma grande notícia, possivelmente por ter sido uma notável exceção.
O Brasil é um dos países mais perigosos do mundo para aqueles que enfrentam os grandes latifundiários, os narcotraficantes que dominam as favelas, ou mesmo a polícia.
Entre os assassinos de Marielle havia três policiais retirados, integrantes de um esquadrão da morte.
Marielle, vereadora pelo PSOL, feminista, favelada, mãe, negra e lésbica, passou a ser perseguida pelas milícias a partir da década passada, quando fez campanha denunciando a conivência entre as forças armadas e os grupos paramilitares e mafiosos na repressão social às comunidades dos morros cariocas, onde dois milhões de pessoas moram.
A jovem socióloga tinha demonstrado a participação de militares e de milicianos na morte de numerosos militantes sociais dessas comunidades e alertava que a militarização da segurança interna do Rio de Janeiro, decretada pelo presidente Michel Temer, em fevereiro de 2018, em lugar de terminar com essa conivência, acabava reforçando-a.
E assim foi. Um relatório da plataforma digital Fogo Cruzado (I) revela um aumento no número de assassinatos nas favelas, cometidos por policiais e integrantes de milícias nos seis meses posteriores à operação dirigida pelo general Walter Souza Braga Netto, ex adido militar da Embaixada Brasileira nos Estados Unidos.
O Projeto Fogo Cruzado, originalmente desenvolvido e lançado pela Anistia Internacional Brasil em 2016, tornou-se independente e autônomo da organização a partir de janeiro de 2018 (II) , e segundo essa plataforma digital, desde fevereiro de 2018, os tiroteios na região do Rio de Janeiro cresceram 33 por cento em relação aos cinco meses anteriores à intervenção militar. Nas comunidades que contam com Unidades Policiais Pacificadoras, o crescimento foi de 12 por cento.
“Os militares estão mais preocupados em controlar os jovens e em criminalizá-los do que em combater o narcotráfico e as milícias”, afirmou Marielle Franco no dia 14 de março, dia em que foi assassinada a tiros.
Hoje, os grupos paramilitares controlam 700 das comunidades cariocas.
A ONG britânica Global Witness contabilizou, em 2017, 207 homicídios de militantes de direitos humanos, ambientalistas, sindicalistas, ou dirigentes sociais em geral, no mundo, sendo considerado o ano mais mortífero de todos os já registrados. 60 por cento desses assassinatos ocorreram na América Latina.
Já a ONG irlandesa Front Line Defenders, revelou que no mesmo ano, em 2017, 212 assassinatos (68 por cento) foram na América Latina dos 312 assassinatos de dirigentes sociais ocorridos no mundo.
Possivelmente, as diferenças de cifras entre ambas as ONGs se devam em parte a que um dos grupos (o inglês) se baseia em dados referentes a 20 países, já o outro, o irlandês, reúne informações sobre 27 países.
Entretanto, muito provavelmente ambas tenham cifras menores do que as reais, porque boa parte dos homicídios de dirigentes sociais são catalogados como crimes “comuns” por autoridades locais.
Em dezembro passado, o ministro de Defesa da Colômbia Luis Villegas apelidou a epidemia de assassinatos de ativistas em seu país de “Líos de Faldas”, algo assim como “problemas com mulheres”.
A Front Line Defenders coloca precisamente a Colômbia na cabeça destas estatísticas, com 105 mortes, seguida do Brasil, com 51 mortes. Já a Global Witness inverte o ranking (57 homicídios no Brasil para 24 na Colômbia).
Ou seja, dependendo do organismo e do critério, teremos cifras bem diferentes.
Na Colômbia, de acordo com o levantamento de dados feito pelo Defensor del Pueblo, a versão espanhola da BBC Mundo, foram registrados 326 assassinatos de líderes sociais desde janeiro de 2016. Para as Nações Unidas foram 261 assassinatos. Já o Centro de Pesquisa e Educação Popular contabilizou 138 assassinatos em 2017. Finalmente, o Indepaz registou 128 assassinatos em 2018.
O governo do ex-presidente Juan Manuel Santos reconheceu 178 homicídios deste tipo entre novembro de 2016, quando começou a ser implementado o acordo de paz com as FARC, em junho deste ano.
Sejam quais forem os dados considerados, no fundo, não há duas visões sobre este assunto: trata-se de um massacre, que vai em crescente.
Aliás, quase todos ratificam o que Marielle Franco não se cansava de repetir: há uma relação direta entre militares, esquadrões da morte, governos e grandes corporações nos assassinatos de dirigentes sociais.
“Os governos costumam ser cúmplices dos ataques. Um dos fatos mais impactantes revelados neste relatório é a quantidade de homicídios cometidos pelas forças de segurança, com o apoio de chefes políticos e em parceria com a indústria”, afirma o documento Global Witness.
Em pelo menos 53 dos 207 assassinatos revelados por essa ONG, houve a participação das forças “oficiais” e em, pelo menos outros 90 assassinatos, foram encontradas provas da intervenção de esquadrões paramilitares.
Referindo-se à Colômbia, Front Line Defenders assinala que 59 por cento dos assassinatos foram cometidos por pistoleiros pagos por empresários ou por paramilitares, com vínculos com as estruturas de governo.
A Global Witness identifica a agroindústria como o setor em que há mais assassinatos de dirigentes sociais, em segundo lugar vem o setor de mineração e as industrias extrativistas.
Cerca de 25 por cento dos assassinatos em 2017, informa a associação, lutavam contra projetos agrícolas.
“Quando as florestas tropicais são arrasadas para a plantação de monoculturas, quando a terra é explorada pela mineração, quando a terra é ocupada por latifundiários, as comunidades de moradores veem o seu futuro ameaçado”, disse a ONG.
Kiwe Thengsa Fredy Julian Conda Dagua, de 24 anos, era um guerreiro indígena do Povo Nasa, defensor de suas terras ancestrais, na região do Valle del Cauca, hoje em mãos de grandes proprietários de terras, que praticam a monocultura da cana-de-açúcar.
Em 23 de agosto passado, essa liderança indígena foi assassinada com um tiro na cabeça, disparado por um policial do Esmad, tropa de choque especializada em controlar e dispersar multidões, enquanto defendia armado apenas com sua força e pedaços de pau uma fazenda “liberada” por sua comunidade.
Como se sabe, entre os países mais perigosos para a militância em defesa da terra ou do meio ambiente, está o Brasil, e entre os países mais perigosos para os dirigentes sindicais está a Colômbia.
O total de 57 assassinatos contados pelo Global Witness no ano passado no Brasil supera o total de 2016 em 8 mortes, de 2015 em sete mortes e de 2014 em 28 mortes.
A maior parte das vítimas são trabalhadores sem-terra e pequenos proprietários considerados alvos dos grandes fazendeiros ou de empresários que contratam milícias armadas.
A região da Floresta Amazônica é a região mais letal do país e do mundo para os defensores da terra e dos bens comuns: 45 deles foram assassinados nessa região, que abarca a maior parte das terras em disputa no Brasil.
É também a região do Brasil com o maior número de chacinas: podemos mencionar o Massacre de Colniza, ocorrido em abril no Mato Grosso e o Massacre do Pau d’Arco, no sul do Pará, um mês depois. Foram os piores massacres das últimas duas décadas no Brasil, com nove e dez vítimas assassinadas, respectivamente.
Neles estiveram envolvidos policiais, militares e milícias. Como no caso de Marielle Franco, essas duas chacinas foram exceções pelo fato de terem conseguido identificar alguns dos culpados, que foram levemente punidos, por incrível que pareça.
Com relação ao massacre do Pau D’Arco, 17 pessoas foram encarceradas por um tempo. Menos de um ano, porque o Supremo Tribunal Federal decidiu em junho de 2018 deixá-las em liberdade durante o trânsito em julgado. Entretanto, a impunidade é a norma.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), um organismo ligado à igreja católica e que opera como observatório da violência no campo, apenas 5 por cento dos assassinatos ocorridos no Brasil desde 1985, causados por conflitos pela terra e pela defesa do meio ambiente, foram julgados.
“O clima da impunidade favorece a desfaçatez com que se mata”, declarou para a BBC Brasil Rubem Siqueira, integrante da coordenadoria nacional da CPT.
Rubem Siqueira também disse que as instituições estatais que poderiam enfrentar as causas deste conflito não o fazem. São vários os motivos porque não o fazem, entre eles porque desde a instalação do governo de Michel Temer foram afetadas por recortes de todo tipo, desde corte de fundos a funcionários.
No ano passado, em carta aberta dirigida ao chefe de gabinete Eliseu Padilha, a Rel-UITA perguntava: “Até quando os capangas dançarão entres suas vítimas abatidas, sem que nada nem ninguém dê um basta nesse frenesi homicida?”
E enfatizava: “A inação do Estado gera um clima de crescente desassossego nas comunidades vítimas de violência. A exasperante indiferença do governo revela o nível de imoralidade oficial ao que chegamos, terminando por encorajar este fenômeno de terra arrasada, de violência sem fim, onde um mal gera outro ainda mais terrível”.
Muitos dos ativistas mortos a tiros na Colômbia são sindicalistas, principalmente rurais, como os do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria Agropecuária (SINTRAINAGRO), uma organização que sofreu uma verdadeira sangria de dirigentes nacionais e locais nas últimas décadas.
Também há camponeses como Antonio Maria Vargas Madrid, tesoureiro da Junta de Ação Comunal de San José de Uré, no departamento de Córdoba, assassinado depois de ter assinado uma ata de substituição de cultivos de coca, ou como o Yimer Cartagena Úsuga, vice-presidente da Associação Camponesa do Alto Sinú, em Antioquia, morto a punhaladas em janeiro.
Os assassinatos não pararam depois da assinatura do acordo de paz entre o governo de Santos e as FARC, no ano passado. As mortes não só continuam, como se intensificam.
Temístocles Machado recebeu três tiros em 27 de janeiro passado, no estacionamento de carros que havia montado com seu pai no município de Buenaventura, em uma região florestal do Valle del Cauca. Tinha 60 anos e 11 filhos.
“Era consciente de sua própria morte. Ele sabia que ia morrer”, contou para a BBC Mundo, Maria Elena Cortez, ativista e socióloga de Buenaventura.
Há décadas que “Don Temis”, como era chamado, vivia sob ameaças de capangas contratados por latifundiários que exigiam as terras onde ele, sua família e muitas outras famílias viviam desde os anos sessenta.
“A obra mais ambiciosa de Machado foi a recopilação de milhares de documentos acumulados para provar que tanto ele como os seus vizinhos eram proprietários das terras onde estavam assentados há mais de meio século. Esses papeis foram guardados ao longo de 30 anos, desde quando seu pai era líder comunitário da Ilha da Paz”, relata para a BBC.
“Os documentos, agora digitalizados e conservados pelo Centro Nacional de Memória Histórica da Colômbia, também contêm as provas das promessas descumpridas feitas por diferentes autoridades aos vizinhos de Buenaventura, bem como as denúncias por expropriações de territórios ocorridas durante todos estes anos”.
Apesar das ameaças e da certeza de que seria assassinado, Temístocles não quis ir embora de Buenaventura.
Entretanto, a professora Magda Deyanira Ballestas, que recebeu ameaças do Clan del Golgo, uma “banda criminosa” que opera nessa região do norte do país, acabou decidindo-se por ir embora no departamento de Bolívar.
“Você sabe que aqui nós assassinamos quem quisermos”, disse por telefone para a professora um homem que se identificou como “Carlos Mario”.
Magda não era propriamente uma “dirigente social”. Ela mesma reconhece que só tinha participado em atividades em “defesa da comunidade”, mas esse dado em si “revela o nível em que a intimidação neste país pode chegar, atingindo qualquer pessoa que ousar levantar a voz”, disse um de seus colegas.
O governo colombiano admitiu que em Bolívar os “incidentes” que envolvem os líderes sociais (sejam eles homicídios ou ameaças) chegaram a 160 nos dois últimos anos.
Não há país na América Central continental, com exceção de Costa Rica, onde os ativistas não sejam o alvo habitual das balas e dos ataques de forças de segurança, grupos paramilitares ou de capangas.
Honduras é, há muito tempo, “o lugar mais perigoso para quem quer defender o planeta”, dizia a manchete de um relatório especial da Global Witnesse, dedicado ao país centro-americano.
O documento, publicado em 2017, evitava usar de atalhos para denunciar os responsáveis, sejam eles empresário, militares, governadores nacionais e estrangeiros (atentos sempre, e como não poderia ser diferente, aos Estados Unidos), ou as instituições multilaterais financiadoras de projetos.
“A corrupção reinante no país implica, também, que os ativistas possam ser assassinados com total impunidade”, remarcava o texto, e lembrava que desde o golpe de Estado que destituiu o presidente Manuel Zelaya, em 2009, pelo menos 120 ativistas ambientalistas foram mortos em Honduras.
No lugar onde foi executado um militante do Movimento Unido Campesino de Aguán (MUCA), algum dos assassinos deixou um bilhetinho dizendo de forma bem direta: “o melhor ambientalista é o ambientalista morto”.
José Ángel Flores, presidente do MUCA, foi vítima deste destino na própria carne. No dia 18 de outubro de 2016, ele foi assassinado a tiros na cidade de Colón, no local do movimento.
Como também foram Berta Cáceres, liderança do povo indígena Lenca, feminista, fundadora do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras, assassinada uns meses antes; Silvino Zapata, dirigente ambientalista dos afrodescendentes garífunas, morto em outubro de 2016, e tantos outros.
José Ángel Flores era um líder camponês ambientalista de Honduras que, em sua luta contra projetos hidrelétricos, alertava que “na defesa da terra e dos rios, vai-se a vida dos pobres”.
Assim disse Zapata, uns dias antes de que o matassem.
No dia 27 de maio de 2017, Carlos Maaz saía de uma reunião da Gremial de Pescadores Artesanais do El Estor, nas proximidades do lago Izábal, na Guatemala.
Ia participar do fechamento de uma estrada em um protesto contra a contaminação das águas do lago – uma das poucas fontes de alimentação da região – provocada pelo deságue de resíduos tóxicos de três grandes empresas (duas de mineração e uma produtora de azeite).
A polícia atacou os manifestantes com gases de feito moral e com balas, matando Maaz com um disparo no peito.
Só de janeiro a outubro de 2017, a Unidade de Defensoras e Defensores dos Direitos Humanos na Guatemala registrou 328 ataques contra ativistas sociais no país, 52 assassinatos (em sua grande maioria de mulheres: 45) e 72 agressões a militantes de organizações indígenas.
A Rel-UITA realizou neste ano de 2018 missões especiais em regiões centro-americanas.
Na Guatemala se reuniu em agosto com o procurador de Direitos Humanos Jordán Rodas.
“Há uma clara criminalização dos lutadores sociais. Principalmente, no tocante aos projetos extrativistas. Nos últimos meses, foram mortos dez dirigentes sociais, sendo a violência contra esta gente uma constante”, disse então Rodas.
“Não será estranho se os autores intelectuais de todos estes crimes forem os mesmos. Mas, para saber isso, será preciso que o Ministério Público investigue a fundo”. E não o fazem.
“Em toda a América Latina opera um modelo que requer repressão, que requer controle social, que requer disciplinamento dos pobres e mais ainda dos rebeldes”, foi dito em um recente encontro de movimentos sociais realizado em Montevidéu.
A esse modelo, que para se impor não mede nem hesita em recorrer ao sangue e ao fogo, pesam todas estas mortes.
I - NT: O Fogo Cruzado é uma plataforma digital colaborativa que tem o objetivo de registrar a incidência de tiroteios e a prevalência de violência armada na região metropolitana do Rio de Janeiro, através de um aplicativo para tecnologia mobile combinado a um banco de dados. Para acessar entre no link: https://fogocruzado.org.br/
II - NT: Fonte: https://cidadania20.com/projectos/fogocruzado/