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Com José Renato Barcelos
A luta contra a Monsanto mostra que sim, é possível

“As transnacionais são muito poderosas, mas não por isso invencíveis”

Novamente, o escritório de Jair Krischke é o ponto de encontro. Ali conheci José Renato, advogado pela PUC de Porto Alegre, com doutorado em direito ambiental e assessor da Fetag do Rio Grande do Sul. Com ele conversamos sobre os desafios enfrentados pelos defensores dos bens comuns do Brasil e de toda a América Latina.

-Como surgiu o seu interesse e sensibilidade pela defesa do meio ambiente?
-Há bastante tempo que estou vinculado aos movimentos de defesa ambiental, questões agrárias e da posse da terra.

Tudo surgiu quando notei uma agressão crescente e cotidiana ao ambiente.

Estou vinculado há muito tempo aos trabalhadores rurais, fui assessor da Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag) e também de alguns sindicatos, e foi assim que percebi, principalmente com os pequenos agricultores, o drama que a falta de respeito ao meio ambiente gera nessas famílias.

Há pessoas morrendo por culpa dos agrotóxicos, ou doentes e que vão se deteriorando lentamente, até verem o seu sistema nervoso central afetado.

É cada vez maior o número de casos desse tipo.

Essas coisas são as que levam a justiça a entrar com ações contra as grandes corporações que formam parte desta rede de interesses, e que pouco se importam com os trabalhadores, suas famílias ou com o meio ambiente.

As sementes, seu valor e sua apropriação

-O que acontece com a patente das sementes e a concentração das mesmas em umas poucas empresas transnacionais?
-A questão das sementes é pontualmente sensível par todos os que defendemos uma agricultura sustentável. Para nós a semente tem um quê de sagrada, mas para o modelo hegemônico (o do agrotóxico) ela é apenas vista como uma mercadoria, como uma commodity.

Este é o fundo da questão para uma série de problemas, inclusive do ponto de vista simbólico, porque retira da terra o direito a gerar vida nova, destrói pensamentos e construções culturais oriundas das comunidades originárias, dos primeiros agricultores, de milhares e milhares de anos da história da agricultura, permitindo a sobrevivência da espécie humana.

Há que lembrar que esta agricultura moderna inaugurou uma matriz química – dependente, a partir do período da pós-guerra, que se apropriou das sementes para controlar economicamente o setor agrícola e, por conseguinte, toda a cadeia de alimentos.

Isso demonstra para nós quão gigantesco é o nosso desafio se quisermos preservar as sementes crioulas, um material genético crioulo, capaz de suportar as variações climáticas, o que também envolve questões como soberania e segurança alimentar.

A engrenagem do agronegócio

-Não é simples desfazer-se do paradigma semente/agrotóxicos/agricultura em mãos de 5 ou 6 transnacionais e de seu exército de “cientistas” fundamentalistas que pregam contra a ecologia e contra a agricultura orgânica ou familiar…
-Não é nada simples. Trata-se de uma engrenagem cujos motores principais são o dinheiro e o poder.  Uma pesquisadora de grande prestígio, da Universidade de Harvard, a doutora Sheila Jasarnoff, afirmou que o controle das sementes é a nova forma de imperialismo.

Ela compara, muito acertadamente, os processos dos antigos impérios romano e otomano com o das corporações transnacionais, que não só detêm a propriedade das sementes, como também produzem o seu veneno, promovem e vivem da agricultura industrial, sem gerar trabalho, mas contaminando, et cetera.

Com este modelo de produção, a humanidade foi perdendo a diversidade de seus alimentos. Se você for ao supermercado, verá que a nossa alimentação está baseada em três ou quatro culturas: a do trigo, a da soja, a do arroz, a do milho, e só.

Há uma diminuição da base genética, trazendo também problemas para os agricultores, porque já não há uma grande variedade de culturas e a qualidade já é menor.

O Pacote do Veneno

-O que acontecerá com o Brasil, que já era o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, se for aprovado o Projeto de Lei “Pacote do Veneno”, que busca ampliar o uso dos venenos, permitindo inclusive alguns já proibidos em outros países?
-É uma loucura total, porque já temos uma lei que regula o uso dos agrotóxicos em toda a cadeia do processo. É uma lei muito boa, porém que não conseguiu driblar o poder econômico envolvido nisso tudo.

Tanto é assim que estas grandes corporações investem pesado para verem nos países onde operam as mudanças nas leis que não conseguiram ver em seus próprios países de origem, porque lá se deram conta do dano gerado, e portanto tais mudanças são proibidas.

Nos Estados Unidos e na Europa (regiões de origem das corporações produtoras de agrotóxicos) há uma luta persistente e sistemática contra estes produtos.

A França já implementou para até 2020, um arcabouço de medidas para o uso de agrotóxicos, corolários e transgênicos.

Aqui no Brasil, mas também em toda a América Latina, vamos em franco retrocesso. O projeto de lei, conhecido como o “Pacote do Veneno”, permite o uso do glifosato e de outros agrotóxicos que a OMS já declarou que são cancerígenos.

Este projeto, entre outras coisas, propõe mudar o uso da expressão produtos agroquímicos por produtos fitossanitários, um eufemismo para enxergarmos estes venenos como se fossem remédios.

A bancada ruralista quer acabar com as conotações negativas da palavra agrotóxico. É um grupo poderoso com infinitos recursos financeiros, é um movimento mundial que tenta comercializar os agrotóxicos de maneira cada vez mais intensa.

Essa é a nossa luta, e não é nada simples.

Uma pesquisa realizada no norte do Brasil, no município de Lucas do Rio Verde, Goiás, encontrou vestígios de glifosato em mães que estavam amamentando.

Ou seja, a própria mãe ao amamentar seu filho está também passando para ele doses de veneno.

Estas corporações não têm nenhum tipo de responsabilidade social. As doenças geradas pela exposição aos agrotóxicos, como o glifosato, deverão ser tratadas pelo sistema de saúde público e seremos todos os brasileiros e brasileiras os que teremos que arcar com toda essa situação.

O uso indiscriminado de agrotóxicos gera um custo social elevadíssimo que não podemos admitir como sociedade.

O ambiente, uma causa esquecida

-A composição atual do Congresso brasileiro, extremamente conservador e corrupto, com uma bancada ruralista forte que impõe seus interesses, dificulta bastante a vida dos ambientalistas. Entretanto, nem a própria esquerda tem se pronunciado a favor do cuidado do ambiente ou da soberania alimentar…
-A Esquerda brasileira nunca se apropriou das questões ambientais ou ecológicas. De fato, a sociedade inteira não o fez, pelo menos não de forma comprometida.

Os partidos de esquerda ou de centro não levantam a bandeira da causa ecológica como uma política de Estado, muito menos os partidos de direita, diferentemente de outros países, como os do norte da Europa.

É necessário que o Estado se mobilize e determine, junto com os movimentos sociais afins, políticas internas regidas por princípios ecológicos.

Ironicamente, o melhor ministro de Agricultura do Brasil, que gerou uma série de políticas públicas orientadas para a defesa do ambiente e da soberania alimentar foi Sarney Filho, um político de direita.

Internacionalizar a luta

-A articulação entre organizações da sociedade civil é fundamental para enfrentar a máfia do agronegócio…
-Sem dúvida nenhuma temos que construir alianças com todos os movimentos sociais.  Não há forma de enfrentar este modelo sem ampliar o arco de alianças com movimentos como o feminista, o dos quilombolas, dos negros e dos consumidores.

Vejamos o que aconteceu com a Monsanto, uma transnacional que através dos transgênicos e dos agrotóxicos contaminou o mundo. 

Agora, depois de vários anos de resistência graças aos movimentos ambientalistas e sociais, foi possível denunciar o comportamento da empresa, que se viu duramente afetada economicamente.

A transnacional sofreu uma queda significativa em seus lucros, fazendo com que a alemã Bayer a adquirisse, não só para tirá-la da jogada como também para se apropriar de suas patentes.

O que a Bayer talvez não tenha pensado bem é no fato de que não será nada fácil se desfazer da péssima imagem que durante anos a Monsanto gerou em seus consumidores e nos ativistas sociais.

Este caso é uma prova de que como sociedade organizada também temos poder. Além disso, com o avanço das comunicações, é possível internacionalizar com maior facilidade os nossos combates.

Descobrir as rachaduras destas grandes corporações é o desafio, porque são extremadamente poderosas, mas não por isso invencíveis.