De um grupo de seis trabalhadores indígenas submetidos a condições análogas a de escravo em uma fazenda localizada nos arredores do município de Corguinho, em Mato Grosso do Sul, a 225 quilômetros da capital Campo Grande, dois prestaram depoimento ao Ministério Público do Trabalho e revelaram uma pesada rotina na propriedade rural.
Segundo eles, entre março e julho deste ano, ficaram alojados em barraco de lona que improvisaram, sem iluminação, banheiro nem cozinha, informou a Procuradoria do Trabalho.
Todos tomavam banho de caneco no meio do mato e a água, que também servia para consumo, ‘era trazida em um tanque utilizado para limpar fossa da própria fazenda’ – o que provocou recorrentes diarreias, como detalhou um dos indígenas entrevistados pela procuradora Simone Beatriz Assis de Rezende.
O indígena ainda lembrou que, à noite, a movimentação dos trabalhadores era feita com lanternas que precisavam ser carregadas na sede da fazenda e que no acampamento havia lacraia e cobras que se esgueiravam entre as tarimbas onde dormiam.
Os trabalhadores são da Aldeia Lalima, situada no município de Miranda.
Um deles negociou diretamente com o capataz da fazenda contrato de empreitada verbal para a construção de cerca com poste de eucalipto comprado.
O acordo também previa que madeiras retiradas da propriedade fossem depois aproveitadas na construção de um curral para confinar bezerros.
Esse mesmo trabalhador foi quem custeou o transporte do grupo até a fazenda e, no período de permanência, as despesas do alojamento e ferramentas necessárias para a execução dos serviços.
Na audiência do Ministério Público do Trabalho/MS, eles ainda declararam que não houve registro do contrato em carteira, nem foram fornecidos equipamentos de proteção individual. Acrescentaram que, quando havia algum problema relacionado à construção da cerca, precisavam andar por sete quilômetros até a sede da fazenda.
Também relataram existir atraso no pagamento dos valores ajustados e que o capataz costumava ir ao acampamento em torno de três ou quatro vezes por mês.
Já o proprietário da fazenda esteve no local pelo menos duas vezes. “Logo, ambos sabiam das condições em que se encontravam os indígenas”, destaca a Procuradoria.
Ainda de acordo com os trabalhadores, ‘antes da improvisação do acampamento o capataz chegou a sugerir que a equipe ficasse alojada à beira de um açude com água barrenta e para onde os gados se deslocavam’.
O trabalhador que arcou com as despesas decorrentes da prestação dos serviços disse ter desembolsado mais de R$ 7 mil, incluindo ‘a aquisição de duas vacas carneadas para consumo dos indígenas e compra de vários medicamentos, principalmente em decorrência das diarreias’.
Ele contou que no período do vínculo contratual o empregador transferiu alguns valores para a sua conta corrente, mas não soube precisar a quantia.
Complementou que fez repasses de valores para os demais trabalhadores e que havia acertado com o capataz da fazenda o preço de R$ 10,00 por poste de cerca fincado.
Esses dois depoimentos colhidos pelo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul foram apensados a um procedimento preparatório instaurado após denúncia formalizada por meio do portal da instituição.
Uma terceira pessoa, que soube dos fatos ao receber chamada telefônica dos trabalhadores à época das irregularidades, foi ouvida pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, fornecendo inclusive imagens gravadas no local apontando as precárias condições.
A exploração de trabalhadores em condições análogas à de escravo é crime e gera repercussões administrativas, cíveis e criminais, informou a Procuradoria do Trabalho.
As penalidades vão desde multas administrativas aplicadas por auditores-fiscais, além de o empregador responder pelo crime de redução à condição análoga a de escravos – Código Penal, artigo 149, caput, com pena de reclusão de até oito anos.
Segundo a Procuradoria, no Brasil, quatro elementos definem a ‘escravidão contemporânea’ – trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida do trabalhador) ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dada a intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).