“No sábado, a bomba d´água quebrou. Era uma bomba de dois cavalos, ou seja, de muita potência, que me custou 700 dólares, para irrigação com aspersão. Esta é uma região do Aquífero Raigón, portanto, os poços não são afetados com a seca e você também pode conectar a bomba um bom tempo, que a água nunca desaparece”.
Ele comentou sobre o acidente com os vizinhos, também produtores rurais, e constataram que são vários os que sofreram danos similares.
“Estes poços artesianos custam 120 dólares o metro. O meu é muito profundo, tem 45 metros, e aí começamos a entender o que está acontecendo com a gente”, disse.
As hortas estão a 500 metros de uma enorme fábrica produtora de leite da empresa Conaprole, definida como “uma das maiores refinarias de leite da América Latina”, e produz leite em pó para a exportação.
A empresa perfurou poços de mais de 60 metros de profundidade e “está secando toda a região”. “Nunca havia ocorrido algo assim”, afirmou.
A mensagem deste produtor me chega no dia seguinte de que a água começasse a ser comercializada em Wall Street, como um produto financeiro a mais.
No dia 7 de dezembro, o “acre pie” da água, equivalente a 123 milhões de litros, foi negociado por 496 dólares no mercado dos derivados do futuro da água.
A água passará a ser um commodity, como o petróleo, o ouro, a soja e outras matérias primas mais.
A mega agência de informação financeira Bloomberg lembrou, dias atrás, que o anúncio de que a água seria comercializada na bolsa foi feito em setembro passado, quando os incêndios florestais devastavam a costa da Califórnia, estado que suportava uma seca de oito anos.
Uma das grandes preocupações é a escassez de recursos hídricos, o que abre as portas para a especulação financeira.
Como se sabe, o problema da água está no centro dos conflitos sociais em todo o mundo.
De acordo com o Observatório Latino-Americano de Conflitos Ambientais (OLCA), em nosso continente há 160 conflitos pela água, aos quais devem se somar 276 conflitos devido à mineração que, aliás, geram também mais conflitos em defesa da água.
Bairros das grandes cidades da América Latina, como a Cidade do México e São Paulo, devem ser abastecidos com carros-pipa, já que a água potável não chega regularmente a milhões de lares.
Em várias ocasiões os carros pipas são acompanhados por comboios militares para evitar “roubos de água”, levando a uma militarização acelerada do principal recurso da vida.
A empresa de águas de São Paulo, SABESP, difundiu uma lista de 537 clientes privilegiados por pagarem menos quanto mais água consumirem (indústrias, shoppings, transnacionais, como por exemplo a McDonald´s).
No total, consomem 3 por cento da água da cidade e adquirem descontos de 75 por cento. Utilizam-se do “equivalente à agua utilizada por 115 mil famílias e foram os maiores responsáveis pelo aumento de 5,4 por cento do consumo anual de água” (El País, 10 de março de 2015).
Desde 2005, o volume de água disponível para “grandes clientes” aumentou 92 vezes em São Paulo.
Não é que falte água, é que ela está sendo consumida pelas grandes multinacionais.
Pedro Arrojo, relator das Nações Unidas para o Direito à Água e ao Saneamento, assinala que as consequências da futura especulação com a água podem ser similares à especulação com os alimentos, levando à uma grande fome internacional e até mesmo falindo com algumas economias nacionais.
Na Colômbia, nas últimas décadas, 2.100 pessoas desapareceram na área onde está sendo construída a maior hidroelétrica, de acordo com revelações do Poder Judiciário.
A violência é protagonizada por paramilitares que promovem o terror em amplas regiões do departamento de Antioquia, banhado pelo rio Cauca, e onde são levadas a cabo obras da mega represa Hidroituango (La Jornada, 10 de dezembro de 2020).
Os povos lutam com seu próprio corpo contra a especulação financeira da água e da vida, porque não encontram outro modo para defenderem suas plantações e comunidades.
No norte do Peru, onde a mineradora aurífera Conga ameaça contaminar as nascentes em alturas de mais de 4 mil metros, foram criados grupos de defesa denominados Guardiões das Lagunas, que conseguiram desacelerar a voracidade das transnacionais.
O Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos das Nações Unidas indica que “os problemas mais importantes a serem enfrentados no século XXI serão os relacionados com a qualidade e a boa administração da água”.
O documento garante que “os mais afetados continuam sendo os pobres, já que 50 por cento da população dos países em desenvolvimento estão expostos ao perigo que representam as fontes de água contaminadas”.
Chegados a este ponto, devemos nos perguntar: Como é possível que, estando a humanidade em perigo e a vida no planeta ameaçada de extinção, as grandes empresas continuem especulando inclusive com o principal bem comum, a água?
A resposta foi dada, há mais de 20 anos, pelo mega especulador George Soros, quando foi interrogado sobre as nefastas consequências de suas atividades:
“O que faço é apenas ganhar dinheiro. Eu não posso e não vou considerar as consequências sociais causadas pelo que eu faço”. Acrescentou que não se sente “culpado de estar envolvido em atividades imorais”.
O modo de raciocinar de um dos homens mais ricos do mundo, cuja especulação financeira levou à ruína países inteiros, consiste em que se ele não o faz, outros farão, isto é, os seus competidores”.
O que Soros vem nos dizer é que não há nada de pessoal em suas maldades, pois elas são sistêmicas. É o capitalismo.
A barbárie espiritual (não encontro outro nome) revelada em Soros, em sua absoluta indiferença pela vida e pelos seres humanos, é o núcleo de um sistema que gira em torno da acumulação de riqueza nas mãos de alguns poucos.
Porém, se olharmos bem, veremos que o problema não são “eles”, mas sim “nós”, como diziam décadas atrás os precursores do movimento operário.
Em suma, o que faremos para freá-los? Como procederemos para que prevaleça a vida em um sistema de morte? A resposta será coletiva, ou não haverá saídas.
Raúl Zibechi – Exclusivo para Rel UITA