Ainda que quiséssemos retornar a ela, a velha normalidade já não existe. Após a Covid-19, a recessão e a depressão, ou teremos alterado a relação de forças ou transformado radicalmente as nossas prioridades políticas e sociais para começar a construir um mundo mais justo, equitativo e decente, ou talvez estaremos atolados em uma sociedade ainda mais frágil, fraturada e dividida, com altíssimos níveis de desemprego, pobreza generalizada, ditadura e, inevitavelmente, guerra.
Redefinir o foco do debate supõe entender que as vulnerabilidades e as fragilidades expostas, com a crise da Covid-19, não são o resultado de políticas ruins ou de péssimos governos, mas sim o resultado do patriarcado, do racismo e do neoliberalismo.
Mais de 40 anos de neoliberalismo desmantelaram sistematicamente as proteções sociais e trabalhistas, o acesso aos alimentos e o atendimento pelo sistema de saúde público universal, hoje tão desesperadamente necessárias.
Inclusive a nossa capacidade para ser solidários – essa atuação coletiva em prol do interesse público - se viu gravemente deteriorada. O que está nos matando agora não é o coronavírus, mas a correlação neoliberal entre individualismo e interesses privados.
Para construir um futuro melhor, precisamos vencer o patriarcado e o racismo, e questionar radicalmente o capitalismo, um sistema que converte tudo em mercadorias, compradas e vendidas visando ao lucro. A mudança deve ser profunda. Requer transformar a sociedade e os sistemas políticos imperantes, mas também nossos sindicatos, para que tenhamos tanto vontade política como poder para chegar até o fim.
Neste momento não temos esse poder. Precisamos construí-lo através da organização sindical, através de mais organização e luta. E para isso, precisamos reafirmar os direitos sindicais fundamentais: o direito a se organizar, o direito à negociação coletiva, o direito à greve.
Para defender os direitos coletivos dos trabalhadores e criar o espaço político necessário para nos organizarmos, podemos revitalizar e utilizar os convênios existentes da OIT sobre o direito à liberdade de associação, o direito à negociação coletiva, ao emprego, à proteção social e à proteção contra a demissão.
O Convênio sobre o término da relação de trabalho (C158) sofreu enérgica resistência durante 40 anos por parte dos empregadores e do governo, sendo praticamente esquecido pelo movimento sindical. Entretanto, diante dessa crise, precisa-se urgentemente de uma proteção ampla contra a demissão injustificada.
O que não precisamos é de novos convênios da OIT, como a proposta de convênio sobre conduta empresarial responsável (CER). Isto não só reafirma os interesses empresariais corporativos que nos levaram a esta crise, mas também legitima a privatização da regulação social. Marca o fim de qualquer compromisso político com a responsabilidade pública.
A transformação social e política que precisamos não pode começar com concessões. Há uma diferença fundamental entre concessões produto de uma luta e concessões feitas para não ter que lutar.
Temos que começar reafirmando o direito coletivo à saúde pública, à educação, à moradia, à alimentação e a nutrição como direitos humanos universais, não mercadorias que se compram e se vendem com fins lucrativos.
Este ano é o centenário da UITA e é pertinente assinalar que a constituição da UITA reconhece a produção, o processamento e a distribuição de alimentos como serviços sociais básicos que são oferecidos à comunidade.
Nesse sentido afirma: “é responsabilidade do movimento sindical e, em primeiro lugar, dos trabalhadores das indústrias de alimentos e afines, garantir que os recursos de alimentos mundiais sejam utilizados de maneira a que sirvam ao interesse geral e não a interesses minoritários privados ou públicos.”
De fato, a expansão do poder empresarial sobre o sistema alimentar mundial nos últimos 40 anos destruiu sistematicamente o interesse geral, condenando milhões de pessoas à fome. Isto se agravará com a iminente crise alimentar mundial.
Entretanto, novamente vemos como alguns sindicatos internacionais assinam uma declaração1 que reconhece o controle corporativo do sistema alimentar mundial através de regimes de livre comércio, e junto com essas corporações mundiais promete deixar tudo em suas mãos em troca de que, de passagem, alimentem algumas pessoas. Dessa maneira, a fome também passa a ser uma mercadoria que se compra e vende com fins lucrativos.
Para avançar, precisamos desmantelar os regimes corporativos de livre comércio, em lugar de tentar consertá-los. Aqueles regimes corporativos de livre comércio que levam o controle empresarial para a agricultura e para o sistema alimentar mundial, ameaçando a soberania alimentaria e o direito à alimentação, devem ser desmantelados. Como também devem ser desmantelados aqueles regimes corporativos de livre comércio que impõem a privatização, a comercialização e a mercantilização da saúde.
Temos que fazer esse desmantelamento, porque para estes regimes, a desmercantilização e a nacionalização do atendimento da saúde e da água, o investimento público na agricultura e na alimentação sustentáveis, e a promoção da democracia energética são práticas ilegais.
Os gerentes econômicos que dirigem nossos governos, que não são eleitos e não prestam contas, simplesmente usarão as regras dos acordos de livre comércio para impedir a transformação que precisamos.
Cabe advertir que em plena pandemia mundial -com dezenas de milhões de infectados e um milhão de mortos- esses mesmos gerentes econômicos estão dizendo que não podem custear a universalidade do atendimento de saúde pública. Isto é inaceitável. Não é um debate sobre exequibilidade e orçamentos governamentais.
Deve haver uma redistribuição maciça da riqueza e dos recursos, nacional e internacionalmente. Nossa forte obrigação de construir e garantir o acesso universal aos direitos humanos por meios coletivos não pode ser inacessível ou ilegal.
Em julho passado, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) publicou um relatório intitulado “Prevenir a próxima pandemia. Zoonoses: como quebrar a cadeia de transmissão”. No documento, identificaram-se sete fatores de intervenção humana como “impulsores de doenças” que promovem a aparição de zoonoses como o SARS-CoV-2:
- Aumento do consumo humano de proteína animal
- Intensificação insustentável da agricultura
- Aumento do uso e da exploração de espécies silvestres
- Utilização insustentável dos recursos naturais, acelerada pela urbanização, pelas alterações no uso da terra e pelas indústrias extrativas
- Aumento das viagens e dos transportes
- Alterações no fornecimento de alimentos
- Mudança climática
Esta lista também nos dá uma boa ideia de por que voltar à “velha normalidade” não é uma opção. Produziria outra pandemia com consequências ainda mais desastrosas, com uma crise climática cada vez mais profunda.
Se considerarmos as ações coletivas orquestradas, que são necessárias política e socialmente, para enfrentar esses “impulsores de doenças”, visando a prevenir a próxima pandemia, então já estamos falando de uma transformação que requer o desmantelamento dos regimes neoliberais e dos regimes corporativos de livre comércio, a reconquista do Estado visando ao interesse público, um avanço à sustentabilidade baseado na não-mercantilização, na nacionalização, e numa redistribuição maciça dos recursos.
Isso, por outro lado, sugere que é imperativo conquistar essa transformação e reestabelecer a ação coletiva e a solidariedade necessárias para construir um mundo justo, mais equitativo, mais decente e ambientalmente sustentável onde viver, e não só sobreviver de uma pandemia a outra, até que a mudança climática termine com tudo.
Isto não parece ser uma escolha, mas sim um apelo urgente à ação.
Hidayat Greenfield
Secretário Regional UITA para Ásia e o Pacífico
1-O “Llamado a la acción para líderes mundiales: prevenir una crisis mundial de la seguridad alimentaria, a la vez que se combate la COVID-19”, de 9 de abril de 2020.