Uma chaga histórica, que o país vinha tentando curar há quase 40 anos, voltou a se abrir novamente. E ocorreu pelas mãos de um presidente da República eleito democraticamente, personagem que tem entre as obrigações, defender a democracia.
A narrativa do Golpe de 64, quebra institucional que levou o Brasil ao infame grupo dos países que promoviam a tortura, está sendo revista de modo a glorificar aquele ataque à democracia.
O problema é maior ainda. Ninguém poderá dizer que o presidente Jair Bolsonaro faz diferente do que pregou em campanha, como quando homenageou o torturador Carlos Brilhante Ulstra no plenário da Câmara Federal.
Eleito presidente da República, irresponsavelmente faz acordar parcela conservadora da sociedade que nunca aceitou a versão oficial, e que segue numa toada equivocada sobre as razões do chamado subdesenvolvimento brasileiro, inclusive glorificando o arbítrio.
Em 1964, o governo de João Goulart debatia temas ousados e caros à classe trabalhadora, como o aumento do salário mínimo e a Reforma Agrária. Os sindicatos, eternos canais de expressão e de distribuição de renda para os mais humildes, iam às ruas para cobrar um país com efetiva justiça social. A agitação era intensa, mas o momento era de uma sociedade que se discutia, após séculos de desigualdade atroz, e miséria entre as camadas mais vulneráveis da população.
Nossa elite conservadora logo se contrapôs, e ao comprar o discurso da Guerra Fria, apoiou solução que congelou nosso desenvolvimento institucional por 21 anos. Alimentou a farsa da influência dos regimes comunistas, discurso que facilitou os movimentos explícitos do golpe.
Em poder dos militares, e como sempre ocorre em países que assumem tal direcionamento, o aparato do Estado perdeu qualquer traço de dignidade. Além da repressão oficial, os porões das polícias e do Exército passaram a ser palco da selvageria, e não foram raras as mortes, como a do jornalista Vladimir Herzog, que sequer teriam passado pelo crivo do governo.
O presidente Bolsonaro envergonha os militares, ao exaltar período em que eles erraram. Um período onde grassou a corrupção, os desmandos e favorecimentos, a despeito da disciplina rígida para com aqueles que buscavam se manifestar contrários ao regime.
Uma história em nada diferente de qualquer republiqueta africana ou mesmo latino-americana, de exemplos fartos e violentos. Um momento de dor e de revisão, nunca de aplausos. Momento onde textos como este, nunca seriam publicados em veículos de imprensa como a Gazeta de Limeira, devido à censura oficial.
Queremos um país desenvolvido e justo, sob a égide da Constituição. Militares, cumprindo sua missão de defesa nacional. O povo se manifestando sempre que seus direitos forem ameaçados pelos poderosos, tendo ao seu lado suas entidades representativas.
Acima de tudo, queremos uma História que não conceda a glória aos torturadores, e confunda repressão com disciplina. Nosso país é maior que isto, e ninguém está acima da democracia.
(Publicado originalmente na Gazeta de Limeira)