O caso Julio de los Santos
A Julio de los Santos, um trabalhador rural uruguaio que há anos vive praticamente prostrado e a quem a justiça de seu país lhe bloqueou todos os caminhos, lhe foi aberta uma luz de esperança: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) avança em seu caso, que poderia chegar à Corte Interamericana.
Daniel Gatti
7 | 5 | 2024
Imagem: Allan McDonald | Rel UITA
Julio vem tentando, há vários anos, ser reparado pelos graves danos à saúde que lhe foram causados pela constante exposição a agrotóxicos que ele foi obrigado a suportar durante os 384 dias que trabalhou para Arrozal 33, a principal empresa empregadora (praticamente, a única fonte de trabalho) em uma localidade do departamento de “Treinta y Tres” totalmente dedicada à produção do cereal.
A empresa incumpria gravemente suas obrigações legais de prevenção e segurança no trabalho.
No período durante o qual ele trabalhou para a companhia —em cujos terrenos também morava, como muitos outros trabalhadores— De los Santos foi obrigado a manipular tambores repletos de resíduos de agrotóxicos, entre eles glifosato, sem a proteção adequada.
Além disso, ele passou uma jornada inteira totalmente encharcado em um líquido viscoso e fedorento, sem autorização para trocar de roupa.
Depois de certo tempo, como não podia ser de outro jeito, ele ficou doente, e paulatinamente foi piorando, diante da total indiferença dos diretores da Arrozal 33.
Finalmente, ele decidiu iniciar um processo judicial contra esta empresa, a qual é qualificada pela imprensa ligada a poderes econômicos como “ícone produtivo do Uruguai” e pertencente a um setor que conta com o apoio do presidente Luis Lacalle Pou.
Quando começou seu processo judicial, Julio já dependia de um respirador e já estava tomando infinidade de medicamentos diariamente.
Durante o julgamento, o Banco de Previsão Social* chegou inclusive ao ponto de determinar que sua incapacidade era absoluta, estabelecendo um grau de quase 90%, o que o impede de voltar a trabalhar pelo resto da vida. Ele só tem pouco mais de cinquenta anos.
Após três anos de batalhas judiciais conturbadas, em 2021, seu advogado Santiago Mirande conseguiu um milagre: que uma juíza condenasse a Arrozal 33 a pagar a Julio cerca de 220.000 dólares por “dano moral”, “danos emergentes” e “lucro cessante”, devido à exposição comprovada por peritos a “fatores contaminantes de natureza agroquímica ou biológica”.
Era uma sentença histórica para a justiça uruguaia, a primeira em que se indemnizava um trabalhador rural por contaminação por agrotóxicos.
Mas a alegria durou pouco, porque dois meses depois, com uma rapidez de chamar a atenção, um tribunal de apelações revocou a decisão anterior e devolveu o sorriso aos empresários.
Levando em consideração somente as provas apresentadas pela empresa e, portanto, descartando perícias médicas independentes, a sentença em segunda instância é um compêndio de arbitrariedades e erros de procedimento.
Pior ainda: foi validado, no final de 2022, pela Suprema Corte de Justiça (SCJ). Citando as palavras do advogado: "É muito grave o sinal que o mais alto tribunal de justiça uruguaio está dando. Ignorou as três perícias apresentadas pelos médicos. Então, tem mais valor a opinião médica de um juiz do que a de um médico?”.
Mirande também destaca que a sentença apresenta erros na aplicação de normas processuais e, em última instância, retira garantias e previsibilidade de todos os cidadãos. “Em poucas palavras, uma decisão própria de um Supremo medieval”.
“O Supremo Tribunal da fábrica de alimentos”, intitulou então La Rel, que tem acompanhado este caso passo a passo por suas implicações globais para os trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Com os caminhos fechados no Uruguai, Mirande compareceu diante da CIDH.
“Nem toda as denúncias são aceitas pela Comissão. E muitas vezes, quando os Estados acusados respondem, o órgão aceita seus argumentos e arquiva os casos. Neste, isso ainda não aconteceu”, disse Mirande à La Rel.
O advogado tem esperanças de que a CIDH, que tem mostrado preocupação com a situação de muitos trabalhadores rurais latino-americanos vítimas de situações semelhantes à de De los Santos, acabe decidindo encaminhar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte-IDH).
Isso ainda vai demorar, porém a rapidez com a qual a Comissão avançou nesta ocasião (quando recebeu o caso do Julio, em fevereiro de 2023, ainda estava analisando demandas de 2014) dá muita confiança sobre a atuação da Comissão.
Enquanto isso, Silvia, a cônjuge de de los Santos, está apresentando sintomas semelhantes aos do marido.
Além disso, se sabe que há outros trabalhadores contaminados na própria Arrozal 33. Mas eles não têm coragem de denunciar sua situação.
Eles têm medo, e estão esperando para ver o que acontece com o caso de Julio para decidir o que fazer.
É por isso também que esse processo é tão importante, enfatizou Mirande. Para que o medo, por uma vez, mude de lado.
*Nota do Tradutor: O equivalente ao INSS no Brasil