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Recorde de violência no campo brasileiro
“Uma luta inglória”
Em mais de 60 por cento dos casos de assassinatos vinculados a conflitos agrários cometidos em 2019, durante o primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro, a justiça ainda não se pronunciou.
Amalia Antúnez
Foto: Gerardo Iglesias
De acordo com os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), somente em um dos 31 assassinatos cometidos na área rural do Brasil, em 2019, houve uma sentença judicial. Mas o tribunal considerou que foi um acidente, coisa que a família da vítima nega rotundamente.
Passado mais de um ano, outros 19 casos (61 por cento do total) continuam abertos. Em dez deles (32 por cento) a fase de investigação policial foi concluída, porém ainda estão à espera de julgamento. Seis outros estão relacionados com mesmo episódio: o massacre de Baião, no Pará.
Somente em sete dos assassinatos houve detenção preventiva dos suspeitos, em sua maioria latifundiários e capangas, mas em quatro dos casos todos terminaram liberados.
“A impunidade é um arranjo estrutural onde as vítimas da violência mantêm sua condição histórica de invisibilidade, inclusive quando são eliminadas”, sentencia Paulo César Moreira, coordenador da CPT, organização que há mais de três décadas vem elaborando um relatório anual sobre conflitos no campo.
A invisibilidade referida por Moreira está relacionada com o perfil das vítimas.
Os executados em 2019 foram em sua maioria homens (93 por cento), residentes de estados da Amazônia Legal (87 por cento), vinculados a movimentos sem terra (35) ou indígenas que morreram em defesa do território (25); trabalhadores pobres, que comumente viviam ameaçados e que sonhavam com um pedaço de terra para sobreviver.
A crueldade com que alguns destes assassinatos foram praticados evidencia o ódio e os preconceitos vividos pela população do campo.
A ambientalista Rosane Silveira, de Nova Viçosa (BA), por exemplo, foi encontrada com os pés e as mãos atadas, apunhalada, com marcas de estrangulamento e com um tiro na cabeça.
Entre os suspeitos e/ou investigados pela polícia e os acusados pelo Ministério Público estão os latifundiários locais, seguranças contratados pelos próprios latifundiários, caçadores, além de madeireiros e grileiros.
A carência de infraestrutura das instituições policiais e a lentidão do poder judiciário colaboram para a impunidade, que se verifica tanto nos delitos recentes como nos mais antigos: dos 1.496 casos de violência no campo, registrados entre 1985 e 2018, só 120, ou seja, 8 por cento foram julgados, de acordo com uma pesquisa feita pela CPT.
Outro aspecto que incide diretamente é o medo permanente vivido pelos sobreviventes.
“Como há muitas mortes, é difícil conseguir testemunhas. As pessoas não querem se envolver, e isto acaba complicando a investigação”, disse a promotora de justiça agrária de Altamira, Pará, Nayara Santo Negrão.
O discurso e algumas medidas adotadas por Jair Bolsonaro, como a redução das inspeções ambientais, agravam a violência.
“Os assassinos sentem que têm licença para matar. Escutam o discurso do governo contra os povos indígenas, ambientalistas, e a favor dos extrativistas. Com isso, se sentem amparados, enquanto as vítimas estão indefesas e desprotegidas”, disse para Repórter Brasil a ex Ministra do Meio Ambiente Marina Silva.
De fato, o número de conflitos no campo aumentou em 23%, de 2018 a 2019, de acordo com dados da CPT, sendo essa a cifra mais alta em cinco anos.
“O que faz com que estas pessoas cometam delitos é sua quase certeza de que permanecerão impunes”.
O estado com mais assassinatos em 2019 foi o Pará. Quase a metade das vítimas (12 das 31) morreram ali e dois massacres (Eldorado dos Carajás e Pau D’Arco) aconteceram nesse estado, onde em 2005 havia sido assassinada a missionária norte-americana Dorothy Stang.
Em um de seus municípios, o de Anapu, três pessoas foram assassinadas em 2019, por conflitos pela terra: Márcio Rodrigues dos Reis, Paulo Anacleto e Marciano dos Santos Fosaluza. Seus nomes estão gravados em uma cruz vermelha junto à tumba de Dorothy.
Nessa cruz figuram também os nomes de outras 16 pessoas executadas nos cinco anos anteriores, sempre por lutar pela reforma agrária nessa região localizado às margens da Transamazônica.
“A desigualdade sobre a posse da terra no Brasil é uma das mais elevadas do mundo e está associada a processos históricos de grilagem, conflitos sociais e impactos ambientais”, conclui um estudo do Instituto de Gestão e Certificação Agrícola (Imaflora)
Dez por cento (10%) das maiores fazendas - o estudo destaca – ocupam 73 por cento da superfície agrícola do país.
Uma das medidas para reduzir a desigualdade seria a reforma agrária, que foi suspensa em 2019 pelo governo de Bolsonaro.
Depois dos camponeses sem terra, os indígenas passaram a ser as principais vítimas de violência no campo. Em 2019, nove deles (sete eram lideranças) foram assassinados por defender seus territórios, a cifra mais alta em 11 anos, de acordo com o relatório da CPT.
“Os invasores se sentiam totalmente amparados em sua violência”, analisa Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Sônia Guajajara considera que o ponto alto da violência atual contra os povos indígenas começou quando o presidente Bolsonaro declarou que não demarcaria nem uma polegada de terra indígena.
E cumpriu com a sua palavra. Não houve nem um centímetro de terra indígena demarcada nos dois primeiros anos de seu governo e todas as solicitações nesse sentido estão bloqueadas.
Se a luta pela defesa do território ou a conquista de um hectare de terra pode custar vidas, o mesmo pode se dizer sobre a batalha contra a impunidade.
“Punir os responsáveis tem sido uma luta inglória”, lamenta o padre Moreira, da CPT.
Com informação da CPT e da mídia Repórter Brasil