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Quando as batatas estão assando…

Suíça e Nestlé, um só coração

Um relatório recente e detalhado mostra como os organismos governamentais suíços tentaram influenciar para limitar o alcance das leis de saúde pública aprovadas em vários países da América Latina, especialmente no México, em prol dos interesses da transnacional suíça Nestlé.

Daniel Gatti

16 | 09 | 2022


Foto: Gerardo Iglesias

A investigação, da associação Public Eye, com sede em Berna, documenta como a Secretaria de Estado para Assuntos Econômicos da Suíça (SECO) tentou obstaculizar uma lei de rotulagem de alimentos adotada pelo México em 2019. Isso já havia sido feito em 2012 no Chile, diante da aprovação de uma iniciativa semelhante, e posteriormente no Peru.

O organismo governamental de cooperação suíço atuou em sintonia com a Nestlé e com outras empresas do setor de alimentos reunidas na Câmara de Comércio e Indústria Suíça-Mexicana, que considerou a lei do país latino-americano um ataque aos seus interesses, conseguindo mobilizar a SECO em seu apoio.

A Nestlé foi quem liderou a pressão, devido ao «acesso privilegiado que tem junto às autoridades competentes» suíças, segundo afirmou um funcionário do Ministério das Relações Exteriores da Suíça que atua no México, em mensagem dirigida à SECO.
«A Suíça dançou ao som da Nestlé», era a manchete do artigo da Public Eye.

«A Suíça dançou ao som da Nestlé«, era a manchete do artigo da Public Eye.

Saúde pública versus interesses privados

A lei mexicana visava combater a obesidade, declarada no final de 2016 pelo governo como uma «emergência epidemiológica nacional».

Dos 38 países que compõem a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), perdendo só para os Estados Unidos, O México é segundo o país com as maiores taxas de obesidade.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição, 38 por cento dos meninos e meninas entre cinco e onze anos estão acima do peso e 74 por cento da população do país com mais de 20 anos de idade «está muito acima do peso».

Uma das principais causas da obesidade são os maus hábitos alimentares, acentuados pelo alto consumo de produtos com pouca ou nenhuma nutrição, como alimentos e bebidas ultraprocessados, que estão -cada vez mais rapidamente- substituindo as frutas, as verduras e os legumes, sendo, pois, os ultraprocessados a base da dieta mexicana atual.

Dados de 2013 indicam que 214 toneladas de alimentos ultraprocessados per capita foram vendidas no México naquele ano. Na OCDE, apenas os Estados Unidos, o Canadá e a Alemanha apresentaram valores mais elevados.

Segundo o epidemiologista Hugo López-Gatell, subsecretário de Prevenção e Promoção da Saúde da Secretaria de Saúde do México, em 2018 metade das mortes registradas no país se deveu a doenças relacionadas à má alimentação. Os números de hoje são ainda mais assustadores.

Coincidentemente, a Nestlé é uma das empresas que mais vende alimentos ultraprocessados no México. Em 2019, arrecadou mais de 1 bilhão de francos suíços (aproximadamente 1 bilhão de dólares).

Curiosa sensibilidade

Em 2014, o México decidiu abordar o assunto pela primeira vez: introduziu um imposto sobre bebidas açucaradas e tornou obrigatório os produtos ultraprocessados especificarem em seu rótulo o teor de açúcar, sal, calorias e gordura saturada, além de incluir uma tabela com as necessidades nutricionais diárias das pessoas.

A tentativa não teve sucesso: os rótulos não eram claros e, além disso, “o Conselho Mexicano da Indústria de Produtos de Consumo, ConMéxico, no qual a Nestlé desempenha um papel ativo, assegurou que os valores de referência fossem determinados de forma a favorecer a indústria”, afirmou Public Eye.

Cinco anos depois, a nova lei era muito mais contundente: era obrigatório que as informações fossem claras e notórias, com selos pretos, rotulando os produtos mais nocivos, ficando proibido que esses “alimentos” estivessem disponíveis nas cantinas escolares e que aparecessem na publicidade para crianças. Os perfis nutricionais também foram mais restritivos.

A Nestlé se sentiu particularmente afetada e mobilizou tropas e recursos para que a SECO assumisse as preocupações da Nestlé como próprias. «Os interesses da Suíça» estavam em perigo, disseram alguns de seus representantes no México. E a SECO era sensível a essas pressões.

A transnacional fez de tudo para que a norma fosse modificada. Chegou mesmo a «sugerir» aos seus fornecedores mexicanos que se mobilizassem para impedir o fechamento de postos de trabalho «num momento em que as perspectivas económicas nacionais são difíceis», segundo uma carta que lhes dirigiu.

Por enquanto, não parece ter encontrado eco entre as autoridades mexicanas.

“Se países como a Suíça querem defender os interesses de suas empresas, devem fazê-lo no âmbito de suas leis nacionais ou em organizações internacionais. Mas nunca permitiremos que outro país ou uma empresa estrangeira dite nossa política de saúde”, disse López Gatell ao Public Eye.

No Chile, país latino-americano pioneiro nesta matéria, a transnacional suíça também tentou impedir a aplicação da popularmente chamada Lei “Super 8” (lei 20.606), em referência a um chocolate fabricado pela Nestlé e que naquele país é bastante consumido (três tabletes por segundo, segundo a empresa).

E contou com a colaboração da SECO, que buscou, por exemplo, que os rótulos de advertência sobre os danos causados por esses “alimentos” fossem menos “alarmistas”.

Em entrevista realizada em 2017, o diretor local da Nestlé, Pablo Devoto, permitiu-se falar «como se fosse o presidente do Chile», ironizou Public Eye. «Temos que deixar de assustar e começar a educar», explicou então o empresário.

Entretanto, ele estava errado. “Em junho de 2019, um estudo de acompanhamento realizado por três universidades chilenas mostrou que as vendas de produtos com rótulos de advertência diminuíram consideravelmente: 25 por cento no caso de bebidas açucaradas e até 36 por cento nos cereais para café da manhã”, indicou a ONG suíça.

A Nestlé também operou contra a Lei de Alimentação Saudável que entrou em vigor no Peru no final de 2019. Não teve sucesso.

Tanto o Peru quanto o Chile são mercados interessantes para a transnacional europeia. Em ambos os países, a Nestlé arrecada um total de 500 milhões de francos suíços por ano (cerca de 515 milhões de dólares). Mas no México estão as grandes ligas: lá suas vendas totais ultrapassam 3 bilhões de dólares.

Persevera

A Public Eye disse que a entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte com os Estados Unidos e o Canadá, em 1994, «é frequentemente citado como o início da evolução desastrosa para uma dieta cada vez mais insalubre para a população mexicana», pelas liberalizações presentes.

Mas López-Gatell o situa na década anterior, quando já havia começado no México «uma transformação para o neoliberalismo, para a desregulamentação e, portanto, para o enfraquecimento da proteção à saúde».

O médico e ativista argentino Damián Verseñaassi pensa que assim como há uma divisão internacional do trabalho em que os países do Sul global ocupam um papel subordinado, há também uma «geopolítica da saúde» a partir da qual os países ricos −e as transnacionais− transferem para os países pobres os danos causados por políticas e práticas que não podem mais –ou podem cada vez menos– aplicar dentro das suas próprias fronteiras.

Nos onze anos em que esteve à frente da SECO em Berna, até recentemente, Marie-Gabrielle Ineichen-Fleisch se orgulha de ter defendido com unhas e dentes os interesses das transnacionais suíças no exterior.

Uma das principais tarefas dos meus últimos onze anos como diretora da SECO foi evitar mais regulamentação”, disse agora em maio.