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Genocídio, além de qualquer número

Quando já não restam palavras

Em uma semana em que especialistas independentes concluíram que o que acontece em Gaza só pode ser qualificado como genocídio, e em que um ministro israelense confirmou os planos de seu governo para transformar o enclave devastado em um resort de luxo para milionários, uma alta funcionária da ONU declarou que o número de mortos nesse pequeno território pode já se aproximar dos 700 mil.

Daniel Gatti

22 | 9 | 2025


Foto: Gerardo Iglesias

“710 é o número de dias de horror absoluto que o povo de Gaza suportou, e 65 mil é o número de palestinos supostamente mortos, dos quais mais de 75% são mulheres e crianças, mas na verdade deveríamos começar a pensar em 680 mil”, disse em Genebra, na segunda-feira, Francesca Albanese, relatora da ONU para os Territórios Palestinos.

Esse número, o de 680 mil, “é o número que alguns acadêmicos e cientistas afirmam ser o verdadeiro total de mortos em Gaza”, afirmou quem tem sido uma das principais denunciantes do que há muito tempo já chamou de “limpeza étnica”, “campanha de extermínio”, “massacre sistemático”. “Genocídio”.

Se esse número —baseado no nível de destruição já verificável na Faixa e em estimativas sobre a população sobrevivente— for confirmado, disse também Albanese, o total de crianças menores de cinco anos assassinadas por mísseis, bombas e tiros israelenses não seria inferior a 380 mil. A maioria dos outros 300 mil seriam crianças acima de cinco anos, adolescentes e mulheres.

Uma investigação recente da corajosa publicação digital israelense +972, baseada em vazamentos dos serviços secretos de Benjamin Netanyahu, revelou que pelo menos 83% das vítimas do massacre coletivo israelense são civis sem vínculos com o Hamas ou outras organizações armadas palestinas.

Quatro de cinco

Mas, seja qual for o número total de vítimas —65 mil, como os próprios palestinos contabilizam até agora com base apenas nos corpos que chegam aos hospitais ou necrotérios, ou 680 mil, segundo as novas estimativas—, o genocídio já está configurado.

Configurado há muito tempo.

Foi confirmado por uma Comissão Independente de Investigação designada pela ONU, que apresentou nesta semana um relatório minucioso de 70 páginas, fruto de quase dois anos de apuração de fatos, documentos e depoimentos.

Segundo declarou a presidente do organismo, a jurista sul-africana Navi Pillay, que nos anos 1990 presidiu o tribunal internacional sobre o genocídio de Ruanda, Israel está cometendo em Gaza quatro dos cinco tipos de atos classificados como genocídio na Convenção de 1948, firmada para prevenir esse tipo de crime.

Pillay enumerou esses crimes contra a humanidade que Israel comete cotidianamente há quase dois anos: assassinar membros de um mesmo grupo humano de forma indiscriminada e em massa, causar deliberadamente danos físicos e mentais graves, procurar destruir o grupo intencionalmente, impedir nascimentos dentro desse grupo.

Sem nada

O relatório também descreve a destruição sistemática da infraestrutura civil, incluindo hospitais, clínicas, escolas e universidades, além de moradias (a tendência atual das tropas israelenses na Cidade de Gaza é demolir torres de grande altura com dezenas de pessoas dentro).

E, é claro, o uso da fome como arma de guerra, resultado de um bloqueio que já dura meses —salvo por brevíssimas interrupções— e que deixou os palestinos de Gaza praticamente sem alimentos, sem medicamentos, sem combustível, sem nada.

Um trecho do documento diz: “Forças de segurança israelenses atiraram e mataram civis, incluindo crianças que carregavam bandeiras brancas. Algumas delas, entre 1 e 3 anos, levaram tiros na cabeça de franco-atiradores”.

Outro trecho menciona as celebrações de soldados israelenses enquanto massacravam civis, acionavam bombas à distância para destruir casas, e posavam rindo com roupas íntimas e brinquedos de mulheres e crianças assassinadas. Também cita declarações de líderes israelenses pedindo a destruição total de Gaza e celebrando que a Faixa esteja em chamas.

Poucos dias antes do relatório da Comissão da ONU, a principal associação mundial de especialistas em genocídio, composta por cerca de 500 pesquisadores de várias disciplinas, já havia determinado que o que ocorre em Gaza é um caso de genocídio, com base nas mesmas evidências utilizadas pela comissão liderada por Navi Pillay.

Um campo de extermínio à vista de todos

“Gaza é Auschwitz com câmeras”, disse semanas atrás o filósofo italiano Franco ‘Bifo’ Berardi, utilizando uma imagem particularmente forte e direta, ecoada até mesmo por pensadores judeus antissionistas.

“Pensar depois de Auschwitz” foi o título de um livro do filósofo e rabino Emil Fackenheim.

“Pensar depois de Gaza” é o título do último trabalho de Berardi.

Mas o genocídio do povo palestino continua, e Gaza caminha para um futuro ainda mais distópico que o presente: um resort de luxo para magnatas, administrado por grupos empresariais, e sem palestinos, conforme já planejaram líderes israelenses e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Uma distopia em andamento.