“O agronegócio é também o setor que mais contribui para acidentes de trabalho”.
Brasil de Fato
8 | 8 | 2024
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Em 25 de julho de 2024, foi lançado o Observatório de Saúde e Trabalho no Agronegócio (ObAgro), com a publicação do site, bem como, das redes sociais da proposta (Facebook, YouTube e Instagram).
O evento ocorreu durante um Seminário Nacional de Saúde do Trabalhador do setor da alimentação que reuniu sindicatos de todo o Brasil na cidade de Chapecó (SC). A seguir, alguns tópicos sobre esta iniciativa.
Nas últimas décadas, o conceito de agronegócio em perspectiva idílica e tecnicista como um mero “conjunto de sistemas” que alia a ideologia de que o agronegócio seria um modelo pretensamente superior e benéfico para toda a sociedade têm inundado a opinião pública na sociedade civil, instituições de ensino, pesquisa e extensão, as políticas governamentais, bem como as próprias redes sociais.
Não raro, seus propagandistas atuam nas universidades e institutos de pesquisa por meio de financiamento de pesquisas de interesse comercial ou de propaganda, governos e empresas com a perspectiva ideológica de que este representa apenas e tão somente progresso, crescimento e desenvolvimento econômico.
Neste cenário, todos os problemas sociais e ambientais decorrentes das atividades do “agro” são propositalmente apagados ou entendidos como “mal menor”, prevalecendo a propaganda da ideologia dominante glorificadora do agronegócio.
Além disso, é importante lembrar toda isenção tributária e disponibilidade de dinheiro público que o setor desfruta. É como se todos e todas que atuam nas suas cadeias de produção estivessem integrados e felizes numa verdadeira panaceia do desenvolvimento e progresso.
Ocorre que, apesar de todos os esforços feitos pelas grandes empresas do “agro”, da mídia corporativa, de políticos ruralistas a elas ligados e mesmo pesquisadores comprometidos ideologicamente com o agronegócio, que insistem em tratar este como o salvador da balança comercial brasileira e do próprio país, a realidade social brasileira continua a se impor a contragosto de tais atores.
Não é uma tarefa muito difícil entender que quem realmente tem ganhado economicamente com o “agro” são poucos e que a grande maioria dos trabalhadores e trabalhadoras envolvidos nas suas cadeias de produção, ou mesmo atingidos em seus territórios (como camponeses, quilombolas e povos originários) pelas práticas agrícolas químico-dependentes do agronegócio, tem versões muito distintas a nos contar do que aquelas que constam nas propagandas do agro “tech, pop e tudo”.
Isso porque, ao verificar dados concretos do nosso país é possível constatar que, por exemplo, o “agro” figura de forma proeminente na lista suja do trabalho escravo no Brasil ou mesmo tem sido responsável por colocar o país como maior consumidor de agrotóxicos do mundo, como apontam os relatórios da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO).
O agronegócio é também o setor que mais contribui para acidentes de trabalho. Por exemplo, no ano de 2023 cresceram em mais de 100% os acidentes envolvendo vazamento de gás amônia em frigoríficos e fábricas de gelo, com um acidente a cada três semanas no Brasil.
O agronegócio também se destaca por produzir desigualdades. O estudo ‘Alimentando a desigualdade: Os custos ocultos do monopólio industrial da carne mostram que mais de 100 mil trabalhadores da JBS ganham um salário de apenas R$ 1.700, enquanto a empresa recebeu cerca de 31 bilhões de reais do BNDES na última década. O estudo destaca também que as cidades que abrigam fábricas da empresa não experimentaram uma melhora nos índices sociais.
A lista de problemas envolvendo o “agro” certamente não é pequena e é preciso que cada vez mais pesquisadores sérios e comprometidos verdadeiramente com a ciência produzam conhecimento crítico capaz de entender que agronegócio jamais deve ser limitado à interpretação reducionista e auto proclamatória que o entende apenas como exaltação sem compreender os graves problemas de seu desenvolvimento predatório, emprestando aqui a formulação de Bernardo Mançano Fernandes e Allan Campos da Silva em artigo publicado no ano passado no Le Monde Diplomatique Brasilvi.
É com essa perspectiva que estamos lançando o Observatório de Saúde e Trabalho no Agronegócio (ObAgro), iniciativa que reúne grupo multiprofissional de pesquisadores dedicados a estudos e à formação de trabalhador(a) es e lideranças da sociedade civil em temas relacionados à área de trabalho e saúde coletiva.
Nossa equipe é composta por professores e técnicos envolvidos diretamente na pesquisa, ensino e extensão, com aplicação prática de conceitos de prevenção a doenças e acidentes de trabalho com ênfase para os setores do agronegócio.
Pesquisas recentes indicam que os agravos à saúde dos trabalhadores diretamente envolvidos nos circuitos produtivos do “agro” ou mesmo expostos de forma indireta às suas atividades econômicas são significativos.
Pesquisa desenvolvida no estado do Mato Grosso indicou que a maioria dos acidentes de trabalho registrados no estado foram relacionados ao agronegócio, predominantemente nas atividades de frigoríficos e agricultura, havendo ainda correlação positiva entre indicadores de produção agropecuária e de ocorrências e mortes por acidentes de trabalho.
Os autores também indicam que os trabalhadores e as trabalhadoras são os atores sociais que sustentam todo o crescimento do agronegócio no estado estudado e recomendam fortemente a implementação de ações de vigilância em saúde do trabalhador voltadas a esse setor produtivo, tendo como premissa que se estabeleça como fundamental a garantia da saúde do(a) trabalhador(a).
Os projetos iniciais do ObAgro também têm constatado resultados de pesquisa próximos. Frigoríficos são também o lugar privilegiado para adoecimentos musculoesqueléticos, como é o caso das lesões por esforço repetitivo (LER/DORT).
Pesquisas importantes revelam também o impacto do trabalho no agronegócio sobre a saúde mental de homens e mulheres. Durante a pandemia da Covid-19, frigoríficos se tornaram polos de contágio pela doença, devido às condições insalubres e propícias ao contágio por doenças infecto contagiosas respiratórias.
Estudos recentes mostram também que a exposição laboral de trabalhadores de laticínios e frigoríficos, oferecem riscos de contaminação pela Brucelose, uma doença zoonótica negligenciada. E, mais recentemente, outro estudo publicado pela ENSP-Fiocruz avalia o impacto da exposição ambiental por gás amônia em ambientes frios, como fábricas de gelo e frigoríficos, associando-o a intoxicações crônicas e agudas graves, causando morte e danos graves a trabalhadoras e trabalhadores.
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Ao observarmos os casos de acidentes de trabalho ocorridos em frigoríficos no Brasil, para o período de 2012-2022, segundo os dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho (ODSST), registrou-se:
a) 48.752 afastamentos acidentários (B-91); b) 255.219 afastamentos não acidentários (B-31); c) 202.274 acidentes de trabalho no Brasil.
Considerando os 3650 dias destes últimos dez anos temos a seguinte situação para o Brasil:
a) pelo menos 13 trabalhadores/dia afastaram-se por benefícios acidentários; b) 69 trabalhadores/dia afastaram-se por benefícios não acidentários; c) 55 trabalhadores/dia foram vítimas de acidentes de trabalho.
Isso significa que na última década pelo menos 138 trabalhadores/dia saíram de suas casas para trabalhar em frigoríficos no Brasil e sofreram algum agravo à saúde.
Além disso, se considerarmos o curto período de 2020-2022 foram registradas pelo menos uma ocorrência de acidente de trabalho em frigorífico para 1056 municípios brasileiros espalhados por todas as regiões do país. Em números brutos houve 53.897 registros de acidentes de trabalho no setor.
Numa primeira aproximação, se observarmos que neste período existiram 1095 dias, a média de ocorrência de acidentes de trabalho/dia foi de 49,2, ou seja, quase 50 trabalhadores e trabalhadoras sofreram agravos à saúde em frigoríficos diariamente no Brasil nos últimos dois anos.
Os dados ainda nos indicam que em 59 regiões imediatas brasileiras que possuem pelo menos um município com ocorrências de acidentes de trabalho em frigoríficos, estes correspondem a mais de 50% de todos os registros de acidentes de trabalho locais. Ou seja, apesar dos avanços que os próprios trabalhadores e trabalhadoras conquistaram, como a Norma Regulamentadora 36 que institui padrão mínimo para preservação da saúde e segurança no trabalho, ainda há muito o que avançar.
Neste sentido, o ObAgro inicia com dois projetos vinculados ao setor de frigoríficos, mas com a perspectiva de realizar muitos outros e junto aos trabalhadores e trabalhadoras de outros setores do agronegócio. Inicialmente, o projeto “Controle e uso seguro de amônia em ambientes frios” que surgiu como reação ao aumento dos acidentes deste tipo, seja de pequena ou grande proporção, no contexto de elucidar tal problema com vistas a sua superação, a partir de dados que cientistas e movimentos sociais já tem disponível conhecimento técnico e operacional para superar tal situação.
Do mesmo modo, o projeto “Insalubridade e trabalho na Agroindústria: perfil epidemiológico de saúde e doença nos frigoríficos” tem por objetivo traçar o perfil epidemiológico de saúde-doença e exposição à insalubridade a que estão submetidos os trabalhadores em frigoríficos no país, a partir de indicadores de frequência, utilizando ferramentas como a cartografia para evidenciar a ocorrência dos adoecimentos.
Ambas as iniciativas, se conectam com a preocupação da promoção e vigilância em saúde do(a) trabalhador(a), tão necessária nos setores do “agro” que, como vimos, tem sido um dos principais causadores de agravos à saúde do trabalhador no país.
Convidamos todas e todos interessados em desvendar a realidade das cadeias produtivas do agronegócio e suas consequências tão pouco faladas na perspectiva tecnicista e idílica propagandeada todos os dias pelos meios de comunicação hegemônicos com vistas a fortalecer as trabalhadoras e os trabalhadores e seus direitos muitas vezes negligenciados.
Este convite para reflexão que fazemos, nada mais é do que estimular as pessoas a pensarem sobre um futuro saudável e seguro da vida no planeta, para todos que habitam a mãe terra. E ao pensarem sobre o tema, que sigam para o passo seguinte: ações concretas de preservação da saúde e da vida no planeta.
Esperamos que o ObAgro seja mais uma iniciativa que se soma a tantas outras com o intuito de fortalecer a classe trabalhadora e a luta por ambientes e condições de trabalho dignos que preservem a saúde das pessoas e que não se configurem como no atual momento em tantos agravos, exposições e doenças.
Autores: Allan Campos da Silva, Fernando Heck e Roberto Ruiz