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Antes, agora e depois?

Os escravistas gozam de boa saúde

Carlos Amorin

30 | 1 | 2025


Um pôster do navio negreiro 'Brookes' que mostra como as pessoas escravizadas eram transportadas em condições horríveis | Foto: Afroféminas

Ontem foi comemorado no Brasil o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, sobre o qual nossa companheira Amalia Antúnez informou em uma excelente matéria publicada aqui mesmo. A ferroada dessa injustiça renovada a cada dia no Brasil e em outros países reacendeu a lembrança comovida da minha visita em 2005 à Ilha de Gorée, no Senegal, no contexto da participação da Rel UITA em um Encontro Mundial de Economia Social e Solidária. Depois de passar o dia na Ilha, ao retornar a Dakar, escrevi o seguinte artigo.

A porta da dor infinita

Em frente à cidade de Dakar, a quatro quilômetros da costa, encontra-se a Ilha de Gorée. Foi colonizada pelos portugueses antes de Colombo chegar à América, por volta do século XV. Esse pequeno território de 900 metros de comprimento por 300 de largura foi duramente disputado, passando pelas mãos dos holandeses e também dos franceses. Em 1978, foi declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Atualmente, vivem ali 1.200 pessoas, das quais 75% são muçulmanas e o restante católicas. Ambas as comunidades convivem em total harmonia.

60 quilos de mercadoria humana

Durante quatro séculos, foi uma das principais bocas de abastecimento dos navios negreiros europeus. Calcula-se que por ela passaram 12 milhões de homens, mulheres e crianças, iniciando uma viagem sem retorno para o outro lado do Atlântico. Ao longo de toda a costa de Dakar, foram erguidas as chamadas Maisons des esclaves (Casas dos Escravos), onde eram concentrados e classificados os seres humanos "caçados" no interior do continente, muitas vezes por outros africanos que se beneficiavam do tráfico escravista.

“Nossos avós estavam loucos”, comenta meu guia senegalês, que relata a história com paixão e até com raiva. Atualmente, apenas uma dessas Casas foi preservada, restaurada em 1990.

As "Casas dos Escravos" eram administradas por europeus. As famílias eram separadas; homens, mulheres, crianças e virgens tinham celas diferentes. Os homens eram classificados pela robustez, as mulheres pelos seios e as crianças pela dentição. As púberes e adolescentes virgens eram mais valorizadas e mantidas separadas. O peso mínimo para embarque era de 60 quilos para os adultos.

Os veleiros chegavam da Europa carregados com armas de segunda mão e quinquilharias com as quais compravam os escravos, que depois eram vendidos para as plantações de café, algodão e cana-de-açúcar na América, no Caribe e nas Antilhas. Em seguida, retornavam à Europa transportando esses produtos. Essa triangulação comercial esteve na origem da acumulação de capital que sustentou vários impérios.

O outro Holocausto

Segundo registros históricos, cerca de seis milhões de pessoas morreram nessa ilha enquanto aguardavam para serem embarcados nos navios, e é provável que outros tantos tenham morrido no mar.

As águas ao redor da ilha estavam infestadas de tubarões, atraídos de regiões distantes pela abundância de alimento. As condições sanitárias eram deploráveis, a ponto de a peste que assolou a Ilha em 1799 ter começado em uma dessas "Casas dos Escravos".

En diversos puntos de la Isla se levantan monumentos que recuerdan la tragedia del esclavismo africano, donados por comunidades negras de diferentes regiones del mundo. La Isla de Gorée es también un santuario de la memoria de la humanidad, y particularmente de las comunidades de origen africano; sobre las paredes de la Casa de esclavos se pueden leer conmovedores mensajes dejados allí por sus miles de visitantes.

A porta do demônio

Essa porta, localizada ao fundo, entre duas escadas, era a última visão de sua terra natal para os africanos trazidos à força para a América. Ali, em 1994, o Papa João Paulo II orou, pedindo um tardio perdão à África pela ativa participação da Igreja Católica no tráfico de escravos. No canto superior esquerdo dessa abertura para o oceano, um modesto cartaz de papel diz: "Aqui se abre o caminho sem retorno, a porta da dor infinita”.

Em Dakar, Carlos Amorín — 28 de dezembro de 2005

Hoje como ontem

Passados 20 anos da publicação deste artigo e 137 anos após a abolição formal da escravidão no Brasil, milhares de pessoas são resgatadas anualmente no país de condições de trabalho análogas à escravidão.

Como contrapartida e explicação para que isso continue acontecendo, menos de 1% dos acusados desse crime são efetivamente condenados. A impunidade concedida pela sociedade hegemônica brasileira aos seus escravistas modernos garante a continuidade dos valores cunhados por uma elite supremacista, apenas disfarçada.

O emblemático caso de Sonia Maria de Jesus, em Santa Catarina — ainda mantida sob o teto de seus escravizadores pela justiça brasileira dois anos após ter sido "resgatada" — ilustra com profunda crueldade a inscrição ao lado da porta da Ilha de Gorée: "Aqui se abre o caminho sem retorno, a porta da dor infinita”.

Dos mais de 12 milhões de seres humanos vítimas do tráfico de escravos, dois terços não sobreviveram. Mas ninguém fala do Holocausto africano, silenciado pela má consciência de sociedades opulentas que hoje observam, impassíveis, os mesmos corpos, as mesmas peles, os novos escravizados pela miséria programada, afundando no mar.