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As filhas de um repressor participaram da Marcha pela Verdade e Justiça, de 20 de maio

O seio militar começa a se romper

Participaram da Marcha do Silêncio, de sexta-feira 20, por "Verdade e Justiça", marcando uma grande novidade "institucional" desta manifestação anual que finalmente volta a percorrer o centro de Montevidéu, pós-pandemia. São duas filhas de um militar da ditadura. Ambas promovem a formação da filial uruguaia de "Histórias Desobedientes", um grupo de familiares de militares genocidas gerando uma ruptura com essa herança.

Daniel Gatti

26 | 05 | 2022


Foto: Lucía Iglesias

Ana Laura e Irma Gutiérrez são duas irmãs, filhas de Armando Gutiérrez Bentancourt, sargento do Exército e que, durante a ditadura, atuou no Serviço de Material e Armamento, uma unidade do Exército em Montevidéu onde funcionava um centro de detenção clandestino, conhecido no jargão militar como “300 Carlos”, mas também conhecido pelos presos que por ali passavam de Inferno Grande.

Neste local, onde entre 1975 e 1977 cerca de 500 pessoas foram sequestradas e torturadas, anos atrás os corpos de dois desaparecidos foram encontrados. Muitos outros corpos continuam sendo buscados, atualmente.

Irma Gutiérrez lembra que, quando tinha cerca de seis anos, "numa festa dos Reis Magos ou coisa parecida", organizada pelos militares para seus filhos, o pai dela contou a um outro colega, apontando para um lugar preciso: "Por ali estão os ossinhos. "

Para Irma, que hoje tem 37 anos, essa frase ficou gravada na memória, indo ganhar todo o sentido muito tempo depois. Junto com sua irmã Ana Laura, de 36 anos, ambas foram “unindo os pontos, num processo bastante doloroso" que as levou a “tomar a decisão”.

Este “tomar a decisão” implica participar de um grupo formado em Buenos Aires em 2017, que inicialmente reunia filhos e principalmente filhas de militares que decidiram "romper" com o que deveria ser a sua história "natural", segundo disse Analia Kalinek, filha de um alto oficial da ditadura argentina responsável por inúmeras atrocidades.

Analía foi uma das pessoas que fundaram “Histórias Desobedientes com erros de ortografia”, que hoje também agrupa netos e netas, sobrinhas e sobrinhos de repressores, encontrando réplicas no Chile, no Brasil, no Paraguai e agora no Uruguai.

“Por enquanto, aqui somos só nós duas, mas sabemos que há outras pessoas que podem dar este passo. Aliás, há um uruguaio no grupo do Chile e um outro que mora na França”, diz Ana Laura.

Violências

Seu batismo público oficial em Montevidéu como "Histórias Desobedientes Uruguai" ocorreu participando da Marcha pela Verdade e Justiça, em 20 de maio de 2022, assim como o primeiro grupo, fundado na Argentina, batizou-se em 2018, participando da marcha " Nem uma a menos", que denunciava a violência de gênero.

Porque muitas vezes na vida dos (especialmente das) integrantes do grupo Histórias Desobedientes há experiências terríveis de violência de gênero, praticadas por pais que “transferiam a violência que exerciam nos espaços públicos para a vida privada, chegando a espancar mulheres e filhos”, informou Analia Kalinek.

As irmãs Gutiérrez estiveram em Buenos Aires no dia 24 de março de 2022, participando da manifestação de protesto, para que todos os anos ninguém se esqueça do dia em que se deu o último golpe de Estado na Argentina. Após isso, participaram de um encontro internacional de desobedientes da região.

"Nós duas passamos por terapias, em momentos diferentes", conta Ana Laura.

"A minha terapeuta me incentivou a repensar o meu caminho, não necessariamente a 'conversar' sobre isso. Entretanto, o que me convenceu a falar foi entrar no coletivo, vendo que existem outras pessoas que estão sentindo essas mesmas coisas. Aí, ficou claro que a única forma de fazer com que tudo isso venha à tona é falando".

Ela também disse que ambas se sentem responsáveis por não terem conseguido "obter nenhuma informação do pai delas” sobre o destino dos desaparecidos. O sargento Gutiérrez morreu em 2019, sem nunca ter falado sobre o que havia feito e visto, sempre fiel ao pacto de silêncio selado entre os militares.

Dizer

Até o final, “meu pai acreditava que o correto era matar comunistas e tupamaros. Aliás, para ele, deveriam ter morrido muitos mais", diz a filha mais nova.

Nos seus últimos dias delirava e, atormentado, tinha pesadelos onde gritava que o perseguiam e que queriam torturá-lo.

“Aqueles delírios de nosso pai nos confirmavam as coisas horríveis que ele deve ter feito. Cuidei dele sim, mas também lhe disse: 'Você bem que merece ter pesadelos com isso. Você está pagando em vida pelo que fez, papai', disse Ana Laura.

Irma acha que fazer algum repressor se arrepender e contar o que sabe, ou até mesmo seus parentes, é "fundamental para que as coisas não voltem a acontecer".

“Quanto menos falarem, quanto menos abrirem a boca, menos saberemos como detê-los se eles reaparecerem, sejam eles mesmos ou quaisquer que os defenderem. Porque aqui houve toda uma articulação do Estado para encobri-los, sendo eles bastante intocáveis ainda”, afirma.

Para Ana Laura não é forçoso que a verdade nunca seja de fato conhecida, sendo imprescindível punir aqueles que ainda podem ser punidos ou pelo menos escrachados.

O lema da manifestação de sexta-feira foi particularmente pertinente: “Onde estão? A verdade continua sequestrada e o Estado é o responsável”.