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Desde 1492

O etnogenocídio dos povos indígenas que nunca tem fim

As notícias costumeiramente são relatadas em uma ordem cronológica inversa: de trás para frente, isto é, partindo dos fatos mais recentes até suas origens e contextos. Entretanto, desta vez talvez deveríamos iniciar assim: “No dia 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo chegou à América com três navios; após este ‘descobrimento’, iniciou-se a invasão europeia e com ela o maior genocídio da história da humanidade”. Talvez, porém, façamos isto em outra oportunidade, porque agora urge informar sobre as duríssimas condições de sobrevivência do povo Yanomami nos estados de Roraima e da Amazônia, Brasil.

Carlos Amorín

22 | 02 | 2023


Imagem: Allan McDonald | Rel UITA

Sexta-feira passada, 20 de janeiro, a plataforma digital Sumaúma, com sede em Altamira, no Pará, publicou um artigo cujo título era “Diário de guerra. Não estamos podendo contar os corpos”(1), ilustrado com fotografias desoladoras, de crianças Yanomami desnutridas e doentes. As jornalistas Ana Maria Machado, Talita Bedinelli e Eliane Brum iniciaram o seu artigo assim: “A criança Yanomami já tinha vivido 1.095 dias, mas pesava o mesmo que um bebê que acabara de nascer. Três anos e 3,6 quilos”.

Uma imagem pode mais que mil palavras

As fotografias são implacavelmente duras, imprimindo testemunhos gráficos da fome em outras latitudes, ou dos campos de concentração nazistas. Este horror gerou primeiro repercussões em todo o Brasil, para depois viralizar no mundo inteiro.

Naquela mesma tarde, o presidente Lula anunciou que, no dia seguinte, estaria viajando para Boa Vista, capital do estado de Roraima. Paralelamente, o Ministério de Saúde Pública declarou “estado de emergência sanitária” em todo o território Yanomami.

O presidente Lula chegou à cidade de Boa Vista acompanhado por diversas autoridades governamentais, especialmente Sonia Guajajara (2), ministra dos Povos Indígenas e presidenta da Fundação dos Povos Indígenas, Joênia Wapichana (3), ambas recentemente designadas em suas funções por Lula.

No precário centro de saúde local especializado no atendimento aos Yanomami, o presidente Lula declarou para a imprensa que “Mais do que uma crise humanitária, o que vi em Roraima foi um genocídio: um crime premeditado contra os Yanomami, cometido por um governo insensível ao sofrimento”.

Quando mais é mais

As cifras oficiais do MSP informam que 99 crianças de 1 a 4 anos faleceram em 2022, devido a desnutrição, pneumonia, diarreia, malária, contaminação com mercúrio provocada pela mineração ilegal, além de outras doenças evitáveis.

Entretanto, dados obtidos pela plataforma Sumaúma, graças à Lei de Acesso à Informação, registram a morte de 570 crianças Yanomami, devido a essas mesmas razões, nos últimos quatro anos, período durante o qual Jair Bolsonaro ocupou a presidência.

O Ministério de Justiça, aliás, informou que a Polícia Federal abriu inquérito para apurar crime de genocídio, ao constatar graves omissões por parte de funcionários públicos, responsáveis pela assistência sanitária e humanitária aos Yanomami, além de possível corrupção em grande escala, implicando desvio e revenda de medicamentos e de alimentos destinado aos povos indígenas.

“Ontem, ordenei a abertura de um inquérito policial para apurar se houve genocídio. Consideramos que há indícios muito fortes de negativa de assistência nutricional e de saúde para essas populações indígenas. Houve intencionalidade”, disse o ministro da Justiça Flávio Dino.

O inquérito apurará não só possíveis crimes cometidos por autoridades da Saúde regionais e nacionais, mas também crimes de contaminação ambiental e de desvio de verbas.

O “outro exército” do Bolsonaro

Além de tudo isso, o presidente Lula alertou irá acabar com o garimpo ilegal, em suas palavras “vamos tirá-los de lá” (4).

De acordo com estimativas, seriam uns 20 mil garimpeiros ilegais ocupando os estados de Roraima e do Amazonas, mais de dois terços do total dos Yanomami habitantes da região.

O presidente Lula também anunciou medidas enérgicas contra o desmatamento, que se multiplicou enormemente, graças ao governo de Bolsonaro.

O relatório “Yanomami Under Attack”, publicado em abril de 2022, por Huyukara Associação Yanomami e Associação Wanasseduume Ye’kwana, com assistência técnica do Instituto Socioambiental (ISA), faz um balanço da extração ilegal de ouro e de outros minerais nessa região.

Sabe-se que o problema da mineração ilegal não é assunto novo na Terra Indígena Yanomami (TIY). Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição causada pela mineração tomou uma trajetória ascendente e, deste então, tem chegado a porcentagens cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020, a mineração na TIY cresceu absurdos 3.350%, assinala o texto.

Este relatório mostra que em 2018, a área total afetada pelos garimpos ilegais era de 1.200 hectares. Levantamentos efetuados em dezembro de 2021 comprovaram que essa superfície havia crescido 3.272 hectares.

A voz das vítimas

Para as associações indígenas, o estado de saúde crítico que as imagens compartilhadas mostram, nos últimos dias, com crianças, adultos e idosos desnutridos, é consequência da combinação de três fatores desencadeados pelo garimpo: aumento dos casos de paludismo, falta de acesso a alimentos e água potável, e redução dos serviços sanitários.

De acordo com o relatório “Yanomami Under Attack”, no centro da saúde Yanomami de Arathau, próximo ao rio Parima, “em 2020 foram prestados 11.200 serviços de atendimento sanitário, mas em 2021 esse número caiu para 2.800.

Como consequência – continua o relatório – vários pacientes com doenças tratáveis pioraram seu estado de saúde, alguns vindo a falecer. É o caso de um pajé de 50 anos que faleceu  em outubro de 2020, na comunidade Macuxi Yano, por falta de atendimento médico. Há também a situação de duas crianças da casa Xaruna, que vieram a falecer de malária em outubro de 2022, e em novembro faleceu mais uma criança, por malária e pneumonia.

A plataforma Sumaúma, através da Lei de Acesso à Informação (LAI), obteve outros dados alarmantes: “Os casos de malária, doença que se propaga no território com o contato com os mineiros, passaram de 2.928 em 2014 a 20.394 em 2021; 46 crianças menores de 5 anos perderam a vida nos primeiros 5 meses de 2022, portanto as estatísticas denominam ‘causas evitáveis’ (falta de tratamento médico e falta de prevenção) e 52.7% das crianças Yanomami menores de 5 anos estavam desnutridas.

A informação obtida pelo jornal Sumaúma também mostrou que desde julho de 2020, os centros de saúde que operam dentro do território Yanomami foram fechados 13 vezes, devido às ações dos mineiros, deixando os indígenas sem atendimento médico.

A falta de assistência aos povos indígenas é a forma mais eficaz de matar sem deixar provas”, conclui Sumaúma.

Como dissemos no início do artigo, deveríamos começar esta matéria em 1492, mas isso já foi feito por outras pessoas, algumas delas de maneira excelente.

Não obstante, é necessário debater até que ponto as sociedades não originárias de nossa querida América adquiriram consciência sobre as razões profundas pelas quais as (agora) minorias étnicas continuam sendo dizimadas impunimente, mediante genocídios (5) ou etnocídios (6).

Algumas pessoas já fizeram esta advertência há muitos anos já, como por exemplo a célebre cantora Elis Regina, que em sua versão da mundialmente famosa Aquarela do Brasil, contrapões um coro representando um canto indígena como fundo para a idílica imagem que representa a canção (7).

A Rel UITA se compromete a acompanhar bem de perto esta situação e a colaborar divulgando toda a informação necessária a esse respeito.


Imagem: Allan McDonald

Foto: Samaúra.com

(Com informação de: Sumaúma.com, AFP, France24.com, EFE, Larepublica.co, BBC.com, Nwesletter.ihu, Federico.Tatter Substack, www.ihu.unisinos.br e fontes próprias)

Nota do Editor: Agradecemos a valiosa colaboração de Jair Krischke na elaboração deste relatório.

Notas:

1 – https://sumauma.com/nao-estamos-conseguindo-contar-os-corpos/
2 – Originária das Terras Indígenas Arariboia. O termo Guajajara faz referência ao seu povo nativo.
3 – Oriunda do estado de Roraima. O termo Wapichana faz referência ao seu povo nativo.
4 – Mineradores, principalmente de ouro, nos rios da Floresta Amazônica. São verdadeiras máfias dentro das florestas.
5- Eliminação física de um povo.
6 – Eliminação da “alma” de um povo de sua arte, de sua cultura, de sua língua, de suas crenças, instituições, etc.
7 – https://www.youtube.com/watch?v=rvxmF4KS9O4