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Davos de frente e verso

Milei, Oxfam e os poderosos do mundo

Dois dias antes de, em um de seus discursos mais delirantes, o presidente argentino Javier Milei afirmar no Fórum Econômico Mundial (FEM) em Davos que a humanidade está atualmente vivendo sua era mais próspera e justa, a ONG Oxfam divulgava um relatório sobre desigualdades e pobreza que diz praticamente o oposto.

Daniel Gatti

22 | 1 | 2023


Imagem: Allan McDonald

Tornou-se costume nos dias que antecedem a reunião anual dos ricos e poderosos que é o FEM, a Oxfam, uma associação de organizações não governamentais de origem religiosa fundada no final da Segunda Guerra Mundial em Oxford, Inglaterra, publicar um relatório sobre a pobreza no planeta.

Os documentos da Oxfam sobrevoam invariavelmente os debates do Fórum, uma instância criada em 1971 pelo professor de economia suíço Klaus Martin Schwab com o objetivo de refletir sobre as melhores maneiras de garantir uma governança planetária conjunta entre corporações transnacionais, alguns governos e organizações escolhidas da sociedade civil.

Eles são como o lado B do fórum, o detalhe incômodo "mas necessário para que tenhamos um banho de realidade aqui", como Schwab já disse em alguma ocasião.

Em Davos, também costuma ser convidado algum dissidente que aproveita para dizer algumas verdades à gente bonita reunida na charmosa e montanhosa localidade suíça. Desta vez foi Gustavo Petro, o presidente da Colômbia.

Es parte del folklore del foro.

A realidade

Não se pode dizer que o relatório de 2024 da Oxfam seja ambíguo: nem em seu título ("Desigualdade sociedade anônima"), nem nos dados que apresenta, nem em suas considerações.

Diz, por exemplo:

"Uma enorme concentração de poder empresarial e monopolístico está exacerbando a desigualdade na economia mundial. Ao espremer seus trabalhadores, evadir e eludir impostos, privatizar os serviços públicos e alimentar o colapso climático, as empresas estão impulsionando a desigualdade e gerando uma riqueza cada vez maior para seus já ricos proprietários".

Aponta, entre outras coisas, que desde 2020 a riqueza conjunta dos cinco homens mais ricos do mundo mais que dobrou, passando de 405.000 a 869.000 milhões de dólares, enquanto a riqueza acumulada de 60 por cento mais pobre, cerca de 5.000 milhões de pessoas, diminuiu.

E acrescenta um dado que complementa o anterior e evidencia a acumulação de riqueza no topo: "sete das 10 maiores empresas do mundo têm um diretor-geral bilionário, ou um bilionário como seu acionista principal".

"Se continuar assim, o mundo terá seu primeiro milbilionário (um milhão de milhões) dentro de uma década, embora a pobreza não seja erradicada até passados 229 anos".

A lacuna entre ricos e pobres tem seu reflexo entre Norte e Sul: hoje, os países do chamado Ocidente global, apesar de representarem apenas 21 por cento da população, possuem quase 70 por cento da riqueza.

O (amigo) delirante

Enquanto a Oxfam tocava na má consciência dos bilionários e superempresários reunidos em Davos, Javier Milei, pelo contrário, dizia a eles que abandonassem todo preconceito, que continuassem acumulando riquezas porque disso depende que o mundo "continue avançando" e que o reino dos céus será deles.

Elogios tão descaradamente bestiais ao mais puro "capitalismo de livre mercado" às vezes não caem bem para alguns capitalistas que prefeririam ser reconhecidos por sua filantropia e não tanto por sua ganância.

Isso sempre acontece em Davos: alguém chora, alguém pede para que lhe cobrem mais impostos, alguém afirma que tamanha disparidade é intolerável, algum outro diz - mais lúcido - que se a fissura continuar se alargando, pode ser contraproducente porque pode gerar revoltas, rebeliões, a ira dos explorados.

A Oxfam os instigou a dar uma guinada: "É urgente que os Estados priorizem os serviços públicos, defendam uma maior regulação das grandes empresas, acabem com os monopólios e o excessivo poder de mercado, e apliquem impostos permanentes sobre a riqueza e os benefícios excessivos".

O presidente argentino, pelo contrário, convocou-os a liquidar definitivamente o Estado, fonte de todos os males, gerador de perniciosas desigualdades, nivelador para baixo, e criticou aqueles governantes de países ricos que cederam - segundo ele - ao canto da sereia do "socialismo" e deram algum espaço para a intervenção do Estado.

"Estou aqui para dizer a vocês que o Ocidente está em perigo (...) por culpa daqueles que dizem defender seus valores, mas estão cooptados por uma visão de mundo que inexoravelmente leva ao socialismo", e consequentemente à "miséria", e os fez "abandonar o modelo de liberdade por experimentos coletivistas", disse o argentino.

E também os chamou a deixar de lado baboseiras como a mudança climática, que "não existe", ou demandas como a paridade de gênero, suprema bobagem.

Enough is enough

Os mais criteriosos da plateia ficaram horrorizados.

Milei vai longe demais na incorreção política, é demasiado brutal, e para bilionários ou empresários que naturalmente o veriam com simpatia, pouco rentável pode ser flertar com um personagem que nem sequer é capaz de ver que se pintando de verde podem esconder a depredação ambiental e a loucura que criticam em público e praticam no dia a dia.

Normalmente, Kristalina Georgieva, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, não tem escrúpulos. Sabe o que quer. Contam que em Davos procurou Milei pelos corredores até conseguir posar com ele, sorridente e fazendo também uma das caretas que o argentino costuma fazer.

"Por enquanto, a Argentina vai bem", disse Georgieva na Suíça, referindo-se a um país afundado cada vez mais na pobreza, miséria e desigualdade, e ao qual sua instituição contribuiu tanto para colocá-lo nessa situação. Como tem contribuído também para edificar o mundo descrito no relatório da Oxfam.