Exposição ao frio, a altos níveis de ruído ou a produtos químicos podem levar trabalho a ser considerado insalubre, mas indústria da carne tenta evitar enquadramento que beneficiaria empregados.
Isabel Harari – Repórter Brasil
16 | 8 | 2024
Imagem: Repórter Brasil
Na “maior fábrica de hambúrgueres do mundo”, uma unidade da Marfrig em Bataguassu (SP), inaugurada em 2023, trabalhadores reclamam de temperaturas que variam de 6°C a 9°C em alguns setores.
Aldo*, cujo trabalho exige a manipulação de carne congelada, disse ficar com as mãos vermelhas e doendo mesmo usando as luvas fornecidas pela empresa. Seu colega Dirceu* contou que tenta há mais de dois meses pedir a troca do blusão de lã fornecido pela companhia, sem sucesso: “Está todo rasgado”, lamenta.
Em outro setor da planta, as caixas de carne congelada batendo nas estruturas de inox fazem um ruído incômodo.
“O barulho era insuportável, mesmo depois de terminar o meu turno eu ficava ouvindo aquele zumbido”, relata Julio*, ex-empregado. “Mesmo com protetor auricular e fone de ouvido, é insuportável”, completa seu colega André*.
Já Pedro*, que atuava como refilador na JBS de Pimenta Bueno (RO) presenciou em 2021 um vazamento de amônia —um gás tóxico usado para refrigerar as carnes— e guarda na memória o desespero dos funcionários: “tinha um pessoal desmaiando, outros caindo”.
Atividades com exposição ao frio, a altos níveis de ruído ou produtos químicos podem ser consideradas insalubres, e são passíveis de um adicional que varia entre 10% e 40% do salário mínimo da região.
A lei também proíbe a realização de horas extras nestes locais e quem trabalha nestes setores pode adiantar o pedido de aposentadoria, caso seja comprovado que a atividade realizada é nociva à saúde do trabalhador.
As informações estão detalhadas no relatório ‘Fábrica de acidentes’, desenvolvido pelo Programa de Pesquisa da Repórter Brasil em parceria com a organização dos Países Baixos, SOMO.
Apesar desses relatos, historicamente, os frigoríficos atuam, inclusive na Justiça, para que suas atividades não sejam qualificadas como “insalubres”, de acordo com o procurador do Ministério Público do Trabalho, Lincoln Cordeiro, em entrevista concedida em 2022 à Repórter Brasil.
Em 2015, duas ações judiciais em Mato Grosso terminaram com vitórias dos trabalhadores das câmaras frias. Uma liminar proibiu que a JBS exigisse horas extras de seus empregados e a Minerva foi condenada a pagar R$ 500 mil por exigir trabalho adicional nesses locais – que foram considerados insalubres.
No mais novo capítulo deste tipo de disputa judicial se deu em Rondônia, onde a Justiça reconheceu que a JBS estava perseguindo os trabalhadores que reivindicaram o adicional por insalubridade.
Em resposta à Repórter Brasil, a Minerva disse que adquiriu a unidade em Mirassol D´Oeste (MT), onde se deu a discussão sobre as horas extras, no final de 2014, após os “atos que originaram o processo e a decisão”.
A empresa reforçou que “o processo em referência foi encerrado com a adoção de todas as medidas necessárias ao fiel cumprimento da legislação, confirmando seu compromisso de seguir com as melhores práticas para seus colaboradores”.
Já a JBS reforçou que sua política de saúde e segurança no trabalho “segue as normas previstas em legislações civis e trabalhistas vigentes e são revisadas anualmente com base em indicadores de saúde e segurança, como rotatividade, absenteísmo e horas extras, assim como apontamentos feitos pelos funcionários”.
A Marfrig, por sua vez, afirmou que os equipamentos de proteção fornecidos aos funcionários —entre os quais uniformes, moletons, jaquetas, toucas balaclava, luvas, meias e botas térmicas— são todos adequados a cada atividade, ambiente e necessidade. As manifestações na íntegra das empresas podem ser acessadas aqui.
Justiça reconhece que JBS perseguiu quem cobrava adicional.
Em 2018, empregados da JBS que trabalhavam na planta de Vilhena, em Rondônia, começaram a protocolar ações judiciais reivindicando o adicional por insalubridade – um movimento que seguiu nos anos seguintes.
Mas o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de Rondônia (Sintra Intra) afirma que depois de pedirem o adicional de insalubridade, os trabalhadores iam sendo demitidos.
“Era uma caça às bruxas, uma perseguição sistematizada, jogo pesado”, disse uma fonte ligada ao sindicato e ouvida pela Repórter Brasil sob condição de anonimato. “Eliminava qualquer possibilidade de os trabalhadores reclamarem seus direitos”, conclui.
Segundo o sindicato, ao menos 22 pessoas foram dispensadas entre 2018 e 2023 depois que tentaram obter o adicional de insalubridade na Justiça – o que levou a entidade a ajuizar uma ação coletiva na Justiça, denunciando o assédio.
“A dispensa desses trabalhadores é uma represália, uma forma de coibir o exercício do direito de ação de seus funcionários”, diz o texto da ação.
Neste novo processo, foram anexadas mensagens de texto e áudio em que os trabalhadores expõem o medo da demissão caso seguissem cobrando seus direitos na Justiça.
“Estão chamando aqueles que estão na lista e colocando uma pressãozinha para que desistam do processo”, relatou um funcionário.
“Eles falaram que podem pegar as pessoas que entraram com a ação e demitir todos. Acho que vou cancelar pois pago aluguel, sou casado e faço faculdade”, escreveu outro.
“Quero desistir do processo porque todos que estão ganhando a causa estão sendo demitidos. Não adianta receber um pouquinho e ficar desesperado”, completa um terceiro trabalhador.
Em uma decisão de março de 2023 —que deu ganho de causa aos trabalhadores— o juiz do trabalho Carlos Antônio Chagas Júnior reconheceu que “a atitude da empresa, além de violar direito assegurado constitucionalmente, acarreta em insegurança nos funcionários da empresa em perderem seus empregos, de modo que estes optam pela desistência da ação”.
A decisão chegou a ser revertida pela segunda instância, mas em maio do ano passado, o TRT-14, emitiu nova sentença favorável aos empregados. “As ameaças realizadas pela demandada [JBS] afetam toda a coletividade, em face do notório desrespeito ao ordenamento jurídico trabalhista e, especialmente, a dignidade dos trabalhadores, que convivem com medo e angústia de perderem a principal fonte de subsistência”, diz o texto.
O juiz determinou o pagamento de R$ 450 mil de indenização por dano moral coletivo, a ser revertido para entidades beneficentes para a realização de projetos sociais.
Questionada sobre essa ação, a JBS não teceu comentários alegando que a tramitação não havia ainda sido concluída. Mas, no processo que corre na Justiça, a empresa disse que os “desligamentos ocorrem por diversos motivos, sendo, em sua maioria, por pedidos de demissão”.
(os intertítulos pertencem à Rel)
*Nomes fictícios para proteger a identidade dos trabalhadores