Mundo | ALIMENTAÇÃO | MODELO

Enésimo surto de gripe aviar

Este franguinho não é meu…

Um recente surto de gripe aviária abalou a Europa, a Ásia, os Estados Unidos e o Canadá, forçando o abate de milhões de aves e o fechamento preventivo de milhares de granjas. Por trás de tudo, as condições industriais impostas pelas corporações transnacionais geram um sistema de produção insustentável que, mais cedo ou mais tarde, quem acaba pagando são os trabalhadores, o meio ambiente e os consumidores.

Carlos Amorín

31 | 5 | 2022


Foto: Gerardo Iglesias

Há mais de um século, os cientistas italianos Eugenio Centanni e Ezio Savonuzzi detectaram a doença chamada "gripe aviária" na região da Lombardia, na Itália. Eles foram os primeiros a identificá-la. Mas foi somente em 1955 que o biólogo alemão Werner Schäfer descobriu ser a doença causada por um vírus do tipo Influenzavirus A.

Esta doença foi originalmente localizada em aves silvestres que naturalmente têm um alto nível de resistência ao vírus, geralmente causando pouco estrago nas revoadas. As infecções ocorriam ocasionalmente por contato direto com aves domésticas, de granjas, com danos geograficamente limitados, quase nunca em mais de um ou dois aviários da região afetada.

Hoje, mais de um século depois, algumas das variantes daquele vírus identificado pelo biólogo Schäfer encontraram um campo propício para sua multiplicação em grande escala, e para sua acelerada mutação, chegando inclusive a adquirir a capacidade potencial de infectar humanos e outros mamíferos.

Este "campo propício" nada mais é do que um sistema de produção que aplica - custe o que custar - "as regras do mercado", ou seja, a qualquer preço e na velocidade mais rápida que puderem, atingir o maior lucro possível.

Em apenas algumas décadas, a indústria alimentícia transformou o galinheiro familiar, que abastecia toda a vizinhança, nos atuais "aviários industriais" gigantes, onde se criam cerca de 30 a 40 mil frangos.

Oh Cecile, my Cecile…

Conta-se que em 1923 uma granjeira do estado de Delaware, Estados Unidos, chamada Cecile Steele, foi a primeira a montar com sucesso um estabelecimento exclusivamente avícola com cerca de 500 pintinhos. A história conta que Cecile havia encomendado 50 galinhas para o seu consumo familiar de ovos, mas quando chegou, o caminhão de entrega trazia um pedido que dizia "500 pintinhos". Apesar de ter reclamado, Cecile acabou aceitando os pintinhos sem ter certeza direito do que faria com eles.

Ela os criou dentro de um pequeno galpão de madeira, engordando-os o máximo que podia e consumindo muitos deles com sua família. Finalmente, conseguiu vender mais de 300 para hotéis e restaurantes da cidade, obtendo assim uma pequena margem de lucro.

No ano seguinte, Cecile encomendou mil pintinhos, e em 1928 já havia 500 granjeiros da região criando as suas aves a partir da metodologia dos Steele, pois estes ao longo do caminho haviam conseguido gerar um círculo produtivo, já que os excrementos das aves eram usados como fertilizantes, barateando os custos, e os grãos cultivados na região alimentavam as ninhadas de pintinhos.

A indústria mete a sua colher...

Já na década de 1950, o chamado “frango broiler” ou frango com miúdos era obtido por meio de seleção genética e hibridização. Mais do que uma raça, o termo broiler define um tipo de criação projetada para fazer uma ave crescer rapidamente e produzir o máximo de carne possível. Sob condições controladas de criação, um frango broiler atinge seu peso de comercialização em 40 dias ou menos. As raças "cobb500" e "ross" são atualmente as mais utilizadas devido à sua maior capacidade de engordar rapidamente.

Essas "condições controladas" incluem confinamento extremo das aves para evitar que a ração seja convertida em energia desperdiçada e não em carne. As rações são rigorosamente estudadas para o rápido desenvolvimento muscular, incluindo a vitamina D para compensar a falta de exposição ao sol e uma ampla variedade de aditivos, como certos antibióticos e os hormônios de crescimento, estes últimos agora formalmente proibidos.

O alimento que os frangos recebem não tem nada a ver com o que seria o alimento natural de uma ave, mas as rações são elaboradas com basicamente uma coisa em mente: seu crescimento acelerado. Isso significa inevitavelmente que o produto final não terá nem a consistência e nem o sabor do verdadeiro frango, apenas a sua aparência. Afinal, o que interessa à indústria é vender quilos.

A indústria avícola está dominada por uma dúzia de corporações que, juntas, abateram quase 13 bilhões de aves em 2020, quase duas para cada habitante do planeta. A maior é a brasileira JBS, que produz anualmente 4 bilhões de frangos. Esse montante supera a produção das quatro seguintes maiores produtoras de frango juntas.
Do pintinho que faz “piu-piu” ao Big-Frango

Segundo um relatório elaborado pela Federação Nacional de Avicultores da Colômbia (Fenavi) “Na década de 1950, um frango era alimentado por 100 dias para atingir um peso de 2,1 quilos. No final da década de 1960, o prazo foi reduzido para 67 dias e atualmente o frango está pronto para o mercado com 42 a 45 dias de vida.

Atualmente, a indústria avícola reduziu ainda mais o tempo de maturação, sendo que em alguns estabelecimentos de última geração o frango já pode estar pronto para o mercado em apenas 35 dias, entretanto, já querem conseguir que seja em 28 dias..

Esses frangos broiler geralmente apresentam graves deformações em suas patas e em seu sistema ósseo em geral, pois ganham peso tão rapidamente que seus ossos não conseguem sustentar o peso do corpo, alguns deles morrendo de fome devido à incapacidade de se moverem até os comedouros.

Paralelamente, a indústria farmacêutica aviária se desenvolveu, pois as famosas “condições controladas” são totalmente antinaturais e favorecem o aparecimento e disseminação em grande escala de doenças contagiosas. Por isso, eles recebem vacinas assim que nascem, e remédios ao longo da vida, até preventivamente, porque se um adoecer, todos adoecerão, ou quase todos.

Além disso, os aviários ou galpões deixam as luzes acessas 20 horas por dia, e as quatro horas restantes, de escuridão, são fragmentadas, em momentos de escuridão de 1 hora de duração, pois a passagem da escuridão para a luz estimula o reflexo alimentar das aves, o que colabora com o objetivo de engordar o frango.

Com este panorama, não surpreende que surjam doenças endêmicas que afetam milhares de granjas avícolas causando estragos totais. De uma forma ou de outra, os consumidores acabarão pagando pelo desastre.

Quando a grama vira orégano

Um recente surto na Europa da já conhecida "gripe aviária" causou estragos nas granjas da indústria avícola. No final de novembro do ano passado, o primeiro caso foi detectado no norte da França e rapidamente se espalhou para o oeste do país, afetando mais de 1.300 granjas. Foi então que as autoridades sanitárias ordenaram o abate em massa de 16 milhões de aves. Mas foi só agora, no início de maio, que o risco de propagação do vírus começou a se reduzir, embora seja esperada uma segunda onda.

Como tantos outros, o vírus da gripe aviária (e suas mutações em geral) é altamente contagioso. Os vetores que o transportam de uma granja para a outra costumam ser sempre os mesmos: veículos contaminados, equipamentos, roupas de funcionários rotativos, alimentos. Aliás, o vírus pode permanecer latente por longos períodos e dura mais nas baixas temperaturas.

Mesmo com protocolos de vigilância e controle desses surtos, as epidemias podem durar anos. Por exemplo, uma epidemia de H5N2 no México que começou em 1992, com mortandade de baixo grau, tornou-se altamente mortal, só sendo controlada em 1995.

A realidade é que o problema é abordado de forma incidental, com remendos, e não existe um protocolo de prevenção que possa erradicar a doença se o modelo de produção não sofrer mudanças. Sua permanência, apesar da eliminação massiva e repetida de milhões de aves, está mostrando que mesmo com essas perdas brutais, a avicultura industrial como é praticada continua sendo lucrativa para as grandes empresas.

Nos Estados Unidos houve uma epidemia entre 1983 e 1984 causada pelo subtipo H5N2 que, embora inicialmente tenha causado baixa mortalidade, nos seis meses seguintes atingiu uma taxa de mortalidade de 90%. Para controlar o surto, mais de 17 milhões de aves foram sacrificadas a um custo de 65 milhões de dólares. Mas nada parou a indústria.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE) da Espanha, “na última década o número de cabeças de porco praticamente duplicou, enquanto o de aves se multiplicou por cinco, o que sugere um aumento nas explorações intensivas”. No mesmo período, a Espanha perdeu 170 mil granjas, produzindo, entretanto, duas vezes mais porcos e cinco vezes mais frangos.

A Coordenadora de Organizações de Agricultores e Pecuaristas (COAG) da Espanha denunciou que o campo foi "colonizado por grandes fundos de investimento e por especuladores com voracidade econômica", que estão oprimindo os agricultores e pecuaristas, transformando-os em seus empregados.

Nos dados do referido INE, a mão de obra do proprietário do imóvel caiu 3,7% em relação a 2009, enquanto a mão de obra ocupada por familiares do proprietário caiu 49,8%. Juntos, representam uma perda de quase 130 mil pessoas. Ao mesmo tempo, a mão de obra contratada aumentou 16,3% e a terceirizada 13,9%.

Continuando com o exemplo da Espanha, que pode ser comparável com qualquer outro país que tenha a mesma atividade, no último censo agropecuário apurou-se que, até 2020, existiam 1.152 estabelecimentos que concentravam mais de 115,2 milhões de frangos ou galinhas. Em média, cada aviário industrial tinha 100.000 cabeças.

Em suma, reduz-se o número de granjas, multiplica-se o número de aves nos grandes aviários industriais e os criadores tradicionais são submetidos à condição de empregados de grandes corporações e empresas.


Ilustração: CartonClub
Sopa de vírus

A chamada "crise mundial do setor em razão da gripe aviária" está afetando vários países europeus e americanos, como Canadá e Estados Unidos, onde já foram sacrificados 37 milhões de galinhas, perus e frangos, sendo esta a maior eliminação em massa de aves de aviários da história do país.

Foram constatados poucos casos de humanos afetados por esse vírus e quase todos eram trabalhadores dos criadouros industriais. Embora o vírus possa ser letal para as aves (algumas variantes causam mais mortalidade do que outras), até agora esse não foi o caso para os seres humanos ou para outros mamíferos.

O que se sabe, e com maior clareza a cada dia, é que os alimentos perdem qualidade quando sua produção é feita por investidores privados que promovem sistemas de produção baseados em taxas fixas de retorno, ou seja, lucro a qualquer preço.

O mesmo que acontece na indústria avícola, impondo ritmos desumanos de trabalho em suas fábricas de processamento, está acontecendo em todo o setor de alimentos: as matérias-primas perdem qualidade, os sistemas de produção e de trabalho causam lesões nos trabalhadores e nas trabalhadoras, e geram doenças nos consumidores.

“Nosso futuro roubado”

Embora a origem com absoluta precisão da pandemia global de diabetes ainda seja desconhecida, não há mais dúvidas de que parte de sua causa está nos alimentos industrializados. E o mesmo está acontecendo com o início prematuro da puberdade em meninos e principalmente em meninas de todo o mundo.

Isso é informado pelo New York Times, que relata um estudo liderado pela Dra. Marcia Herman-Giddens e realizado na Carolina do Norte, Estados Unidos, no qual “participaram mais de 17 mil meninas que passaram por exames físicos em consultórios pediátricos de todo o país. Os números revelaram que, em meados da década de 1990, as meninas em média começaram a desenvolver seios - muitas vezes o primeiro sinal da puberdade - aos 10 anos, mais de um ano antes do registrado no ano anterior. Esse declínio foi ainda mais perceptível em meninas negras, que começaram a desenvolver seios com idade média de 9 anos.

Outros estudos internacionais sobre o mesmo tema constataram que o fenômeno ocorre predominantemente entre os setores pobres da sociedade.

Embora ainda não tenha sido possível determinar com total certeza o que está causando essa mudança drástica, suspeita-se que a presença de disruptores endócrinos em alimentos e em embalagens de alimentos possa ter uma influência determinante neste processo. Muitas mães que consultaram os serviços de saúde sobre esse assunto ouviram com frequência a recomendação dos pediatras: "Procure evitar o frango na sua alimentação".

O surto atual ainda não registrou casos na América Latina e, portanto, a demanda internacional está pressionando os produtores da região para preencher o vazio de aves nos países afetados, o que certamente promoverá um esforço da indústria para reduzir ainda mais os tempos de produção e submeter os trabalhadores e as trabalhadoras a ritmos ainda mais intensos.

As organizações sindicais devem, portanto, colocar-se em estado de alerta laranja em torno desta questão para não serem os trabalhadores e as trabalhadoras os que terminarão pagando com sua saúde em nome do louco sistema produtivo das corporações internacionais.


Com informação de:

elmundo.es, cincodias.elpais.com, AFP, pagina12.com.ar, EFE, Greenpeace, 20minutos.es, bloomberglinea.com, elfinanciero.com.mx, dw.com, cnnespanol.cnn.com, larepublica.co, montevideoportal.com, nytimes.com, e informação própria.