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Para não esquecer

“De novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre”

Este ano marca o 50º aniversário do golpe de Estado cívico-militar que derrubou Salvador Allende e colocou Augusto Pinochet no poder. A ditadura fez do Chile um refém para arrancar pela raiz a via pacífica ao socialismo e transformar o país em um «laboratório» da ultradireita econômica, política e social. A sociedade chilena ainda luta para se libertar das sequelas deixadas por essa operação de extermínio da esperança.

Carlos Amorín

15 | 09 | 2023


Imagem: Allan McDonald

Li novamente o meu artigo de 2018, que agora, com algumas pequenas alterações, os companheiros e companheiras da Rel UITA voltaram a publicar, lembrando os 50 anos do golpe de Estado que, ao derrocar Salvador Allende, derrubou também a esperança nascida em seu governo havia florescido em milhões de pessoas em todo o mundo.

Naquele artigo, procurei ilustrar a profundidade da mudança econômica, social e política que estava começando a se delinear no Chile, narrando experiências alheias e pessoais. A grande História é feita por seres humanos, organizados, mas de um por um. O coletivo é a força, o indivíduo é a dinâmica.

Hoje, 50 anos após aquele 11 de setembro, e à luz do processo que o Chile está vivendo atualmente, é necessário reivindicar, recolocar Salvador Allende em seu devido lugar e, com ele, a primeira vitória eleitoral de uma frente de esquerda na América Latina: a Unidade Popular (UP).

O povo unido…

Os propósitos, os sonhos, estavam todos lá: uma nova institucionalidade política através de reforma constitucional, aprofundamento da tímida reforma agrária iniciada pelo ex-presidente democrata-cristão Eduardo Frei Montalva (1964-1970), a nacionalização do cobre e da mineração em geral, assim como das maiores empresas privadas monopólicas, uma economia planejada, a criação de uma Área de Propriedade Social de empresas, um salário mínimo nacional e equidade salarial, independentemente do gênero ou da idade.

Na área da saúde, foram implementadas mudanças enormes e frutíferas. A alimentação dos mais pobres, especialmente das crianças, melhorou, e poderíamos continuar listando as macro e micro revoluções que este experimento, chamado de “socialismo eleitoral” ou “a via chilena para o socialismo”, conseguiu implementar em seus escassos dois anos e meio de governo. A maioria das mudanças almejadas e delineadas pela UP chilena seria hoje uma verdadeira revolução social, econômica, política e cultural em qualquer parte do mundo.

Para os progressistas, humanistas e socialistas em todo o mundo, sua proposta era um farol que iluminava um caminho possível em direção à justiça social, sem a ditadura do proletariado, através de meios democráticos.

Utopia? Ingenuidade? Voluntarismo? Mais precisamente, uma compreensão completa das urgências de um povo e um projeto de construção de um país livre, justo e soberano.

Claro, tudo isso não pode ser tentado sem inteligência, habilidades de comunicação, liderança e, por que não dizer, bravura política. Esses propósitos estão refletidos nas “Primeiras 40 medidas”; comprometidas pela UP ao chegar ao governo(1). Ganharam as eleições de 1970, mas o governo de Allende nasceu condenado à morte por assassinos internos e externos.

A voz do amo e o mau exemplo

Graças à pesquisa de Peter Kornbluh(2), agora sabemos documentadamente que apenas nove dias após Salvador Allende assumir a Presidência, um dos mais proeminentes representantes da elite chilena, Agustín Edwards Eastman, então proprietário, entre outras empresas, do jornal de direita El Mercurio, se encontrava na Casa Branca com Henry Kissinger, conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon, com o próprio Nixon e com o diretor da CIA, Richard Helms.

Dias após o golpe, Nixon e Kissinger se parabenizaram. “Em tempos de Eisenhower, teriam nos chamado de heróis”, enfatizou Kissinger, de acordo com a transcrição de sua conversa agora desclassificada.

A documentação desclassificada obtida por Kornbluh demonstra de forma clara que os Estados Unidos nunca, em momento algum, estiveram dispostos a tolerar a experiência chilena, que consideravam, graças a Kissinger e outros, como “uma ameaça direta” à sua segurança nacional, podendo vir, aliás, a se espalhar por toda a América Latina.

Além do livro originalmente editado em 2003 e agora ampliado e atualizado, é possível assistir a um documentário em quatro capítulos que revisa os momentos mais destacados da pesquisa de Kornbluh. O primeiro deles foi transmitido pelo canal Chilevisión (Canal 11) em 5 de setembro passado(4). Além disso, um episódio seja exibido por semana durante todo o mês de setembro.

Cães de puro sangue

A pesquisa do historiador estadunidense expõe a metódica planificação da agressão velada dos Estados Unidos ao governo de Allende, que incluiu a desestabilização da economia, o financiamento secreto de opositores, o encorajamento aos militares para realizarem um golpe de Estado, o assassinato do comandante-em-chefe do Exército, o general constitucionalista René Schneider, para abrir caminho para os golpistas, e uma longa e macabra lista de ações.

O Exército chileno, de origem prussiana, ou seja, neonazi, cumpriu a ordem minuciosamente: não só deveria derrubar Allende e seu governo, não só deveria descabeçar “o caminho pacífico para o socialismo”, mas também, e acima de tudo, apagar qualquer vestígio de organização popular do mapa e da história, os focos de resistência e rebeldia(5), e instalar um terror ubíquo nas áreas populares, garantindo a radicalização da desigualdade e o “sequestro”; do país para usá-lo como laboratório para o neoliberalismo selvagem, conforme os princípios dos chamados “Chicago boys”;.


Imagem: Allan McDonald
Elite serial killer

Essa preferência do sistema político hegemônico chileno por usar os militares para reprimir e massacrar brutalmente o seu próprio povo, como fez a ditadura cívico-militar liderada por Pinochet, não é nova.

A história chilena está repleta de exemplos dramáticos de repressões violentas contra as manifestações pacíficas de trabalhadores e trabalhadoras organizados reivindicando seus direitos.

O caso mais emblemático talvez seja o massacre de mais de mil homens, mulheres e crianças ocorrido na Escola de Santa Maria, na cidade nortenha de Iquique, pelas mãos da Marinha e do Exército chilenos em 21 de dezembro de 1907. Eram trabalhadores e trabalhadoras da indústria de salitre.

A história dessa repressão assassina foi comoventemente narrada na «Cantata de Santa María de Iquique», do compositor Luis Advis, e interpretada pelo grupo chileno Quilapayún(6).

Vale a pena ouvi-la. Raramente uma obra dessa magnitude consegue refletir as dores e tragédias do povo trabalhador de maneira tão poderosa.

Os militares chilenos, portanto, cumpriram com seu sangrento mandato ancestral de defender os interesses da elite “dona do país”; e até lideraram a criação —sob a influência do sempre presente Kissinger— e o funcionamento da Operação Condor, uma coordenação repressiva que envolveu militares chilenos, argentinos, paraguaios, bolivianos, uruguaios e brasileiros com o objetivo de perseguir e exterminar os supostos “comunistas” da região.
Este senhor Kissinger, banhado em sangue latino-americano, ainda aos seus 100 anos, circula pelo mundo impunemente.

Além disso, quero a tua mente e a tua alma

Mas a ditadura chilena, além de estabelecer o modelo econômico neoliberal mais radical conhecido, de impor uma Constituição mordaça e autoritária, assim como um sistema político marionete e subserviente, implantou o terror por meio do controle e da manipulação diária do imaginário social, contando para isso com a quase ininterrupta cumplicidade dos meios de comunicação, claramente controlados por uma elite oficialista e empresarial.

O nazista Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha Nazista entre 1933 e 1945, já havia cunhado a frase “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.

Sem dúvida, Pinochet e seus seguidores civis e militares incorporaram essa lição e a seguiram rigorosamente, protegidos pela impunidade e pelo monopólio da “verdade”; para manipular a opinião pública, por exemplo, através de campanhas de revisão histórica para desacreditar a figura de Allende, a capacidade de seu governo para a autodeterminação, a sua habilidade na gestão da economia e para criar uma narrativa na qual a mentira e o medo eram constantes.

A ditadura deixou firmemente enraizado no poder um núcleo duro de direitistas de uma reacionária estirpe neopinochetista, quando não simplesmente fascista, que utiliza narrativas goebbelianas-chilenas para tensionar o debate público, semear o medo e deslocar o foco da discussão dos temas centrais que o país realmente precisa abordar coletivamente para superar a era militar e suas influências ainda presentes.

Um momento histórico

As negociações para a adoção de uma nova Constituição que apague os últimos vestígios do pinochetismo são cruciais para abrir o possível caminho para avançar em direção a uma sociedade mais justa, livre, democrática e solidária, para que se possa cumprir a profecia de Salvador Allende, quando em La Moneda bombardeada, deu seu último discurso: “Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor”.

Revisitar este trecho da história regional deixa pendente uma análise sobre o sentido da democracia, como as tentativas de assumir o controle de seus países têm envolvido derramamento de sangue e atraso para os latino-americanos, e como isso tem ocorrido sob a influência do que muitos chamam de «a maior democracia do planeta».

Onde estão os verdadeiros inimigos do desenvolvimento e da autodeterminação da América Latina? Que contribuições podem ser feitas pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras organizados nessa perspectiva? As memórias do Chile rebelde e valente, assim como de Salvador Allende, nos convocam.

Sin olvido, sin perdón

Días después del golpe militar en Chile, el presidente de Estados Unidos, Richard Nixon, y su asesor de Seguridad Nacional, Henry Kissinger, se felicitaron. “En tiempos de Eisenhower nos habrían tratado de héroes”, remarcó Kissinger. La transcripción de esa conversación, que se mantuvo oculta por décadas es uno de los más de 25 mil documentos desclasificados de Estados Unidos sobre Chile.


1 https://interferencia.cl/articulos/las-primeras-40-medidas-del-gobierno-de-la-unidad-popular
2 Veja o recentemente reeditado «Pinochet desclassificado: Os arquivos secretos dos Estados Unidos sobre o Chile«, de Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação do Chile e do Projeto de Documentação de Cuba do National Security Archive dos Estados Unidos. O autor conduziu uma análise de 25 mil documentos dos Estados Unidos sobre o Chile, desclassificados graças ao seu trabalho de pesquisa de mais de 40 anos. Com base em arquivos secretos de organismos como a CIA, o Departamento de Estado e o Conselho de Segurança Nacional, Kornbluh reconstrói como a Casa Branca tentou impedir a posse de Salvador Allende à presidência, com o papel fundamental do empresário chileno Agustín Edwards Eastman, então proprietário do jornal de direita El Mercurio. E como o apoio à ditadura de Augusto Pinochet foi impulsionado por Henry Kissinger, o cérebro por trás da intervenção no Chile. Esse apoio continuou mesmo após o atentado ordenado por Pinochet que resultou no assassinato de Orlando Letelier e de Ronni Moffitt em Washington, em 1976.
3 Ocupou a presidência dos Estados Unidos entre 1969 e 1974, quando renunciou ao cargo devido ao caso Watergate.
4 https://www.chilevision.cl/operacion-chile-top-secret/capitulo-completo/operacion-chile-top-secret
5 Assista ao filme Cabros de mierda, do realizador chileno Gonzalo Justiniano, no link https://vimeo.com/468355713 . Para ter acesso ao mesmo, é preciso usar o código cabroschile2020
6 https://www.youtube.com/watch?v=fVX_c54xA5U