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Um setor com recorde de doenças ocupacionais

Com dor trabalharás

No Uruguai, a indústria frigorífica tem liderado o pódio de doenças musculoesqueléticas por mais de uma década, de acordo com dados do Relatório Anual do Monitor de Doenças Profissionais do Banco de Seguros do Estado (BSE) do Uruguai.

Amalia Antúnez

4 | 3 | 2024


Ilustração: Allan McDonald | Rel UITA

A doença ocupacional mais frequente no setor frigorífico é a epicondilite (cotovelo), devido ao trabalho intenso e repetitivo (70,44%), seguida pela tenossinovite crônica da mão e do pulso (14,28%) e a síndrome do túnel do carpo (10,34%).

De acordo com números oficiais, a indústria frigorífica concentrou 61,7% do total de trabalhadores lesionados no período de 2021-2022.

Até a presente data, o BSE¹ não publicou o relatório correspondente a 2023, mas vários casos de lesões por esforço repetitivo foram relatados por trabalhadores e trabalhadoras filiados à Federação de Trabalhadores da Indústria das Carnes e Afins (FOICA), sugerindo que o número se mantém ou tende a crescer.

Com base nos dados oficiais, a faixa etária que concentra o maior número de casos diagnosticados por doenças ocupacionais está entre os 35 e 44 anos.

O trabalho com nossas bases sindicais e a aprovação de uma reforma previdenciária, que estende a idade de aposentadoria no Uruguai para os 65 anos, trouxeram novamente à tona a questão das doenças ocupacionais na indústria frigorífica.

Entre a omissão de assistência e a negligência

Para esta matéria, a Rel entrevistou quatro trabalhadoras de diferentes frigoríficos que optaram por manter o anonimato para evitar possíveis represálias por parte de seus empregadores.

Todas elas sofrem de epicondilite e tendinite no ombro do braço dominante, e todas têm menos de 40 anos.

Além de trabalharem com dor e de tirarem licença médica cada vez com mais frequência, essas trabalhadoras denunciam que o BSE, organismo governamental que regula e monitora acidentes e doenças ocupacionais, não considera a tendinite no ombro (omalgia) como uma lesão derivada do trabalho.

“A dor é insuportável, não consigo levantar o ombro a um ângulo de 90 graus. Minha jornada de trabalho é de 8 horas, e atualmente só consigo cumpri-la porque estou medicada”, diz Carla*, de 37 anos.

Conforme explicou, durante um mês e meio permaneceu sob a cobertura do BSE, mas após esse período foi encaminhada para o sistema integrado de saúde.

Levei quatro meses para conseguir uma consulta com o traumatologista, e preferi voltar a trabalhar porque preciso, mesmo que a dor seja intensa; sinto uma pontada constante no ombro”, descreve.

Carla trabalha em um frigorífico de bovinos no setor de miudezas há 18 anos.

“No banco de seguros insistem que a omalgia não é uma doença profissional e, para ser considerada como tal, a lesão deve ser do cotovelo ao pulso”.

Outra deficiência na cobertura de acidentes e doenças profissionais denunciada pelas trabalhadoras é que, se o paciente não pertencer ao setor de produção, mesmo que a lesão esteja entre o cotovelo e o pulso, ele não tem direito à assistência.

“Fui consultar no BSE devido a uma dor intensa no braço na altura do cotovelo, e a profissional que me atendeu diagnosticou a lesão (epicondilite), mas me informou que o seguro não poderia cobrir por mais de uma semana porque não pertenço ao setor de produção do frigorífico”, relata outra trabalhadora, a quem chamaremos de Graciela.

Ela trabalha há cinco anos na área de limpeza de uma planta frigorífica, e entre as tarefas que deve realizar estão: levantar grelhas de até 22 quilos para limpar a área e carregar com pá a gordura acumulada nas calhas do setor de abate.


Ilustração: Allan McDonald | Rel UITA
Sobrecarga e temperaturas extremas

Conforme explicou, em algumas ocasiões, a empresa realiza rotação de setores, mas em todos, a sobrecarga persiste.

“Por um tempo, eu fazia a limpeza na área de miudezas, e lá era necessário levantar várias chapas de aproximadamente 7 a 10 quilos, carregá-las em um carrinho de desinfecção e devolvê-las ao chão”.

Entre janeiro e agosto de 2022 (último período registrado), houve na indústria frigorífica mais de 2.000 casos de acidentes. Foi também o setor com o maior índice de incapacidades ocupacionais.

A sobrecarga não é o único fator que incide no desgaste físico dos trabalhadores e das trabalhadoras dos frigoríficos.

Também é um setor que expõe seus trabalhadores a baixas temperaturas, a riscos biológicos derivados de zoonoses, à potencial fuga de amônia, a altas vibrações, a posturas forçadas e a um ritmo de trabalho intenso.

Outra entrevistada, a quem chamaremos de Raquel, tem 28 anos e relatou uma situação semelhante à de suas companheiras, destacando a negligência por parte dos profissionais que as atendem no Banco de Seguros.

No meu caso específico, fui consultar por uma dor intensa em todo o meu braço dominante. Desde o início, o médico que me atendeu disse que pelo ombro não iriam me certificar, pois não é considerada uma lesão relacionada ao trabalho”, destaca.

Ela atua como embaladora na linha de produção de um frigorífico e trabalha sob o regime conhecido como 9 horas 36, que implica em trabalhar 9 horas e 36 minutos de segunda a sexta-feira, totalizando 48 horas semanais.

O ritmo tem sido intenso, levando vários companheiros e companheiras a se machucarem e a precisarem de licença médica. Devido a essas ausências, a empresa contratou pessoal temporário que, por não ser qualificado, acabou sobrecarregando ainda mais o nosso trabalho”, afirma.

Péssimo atendimento

Todas as entrevistadas concordaram sobre o péssimo atendimento recebido por parte dos profissionais de saúde do BSE, e na persistência deles em descartar a lesão no ombro como resultado de esforços repetitivos, do ritmo e da intensidade dentro das linhas de produção.

Fui atendida de maneira muito agressiva no BSE. Antes mesmo de me examinar ou de revisar meu histórico clínico, o médico fiscal me disse que não me concederiam uma pensão por minha lesão no ombro”, recorda Marcela, uma funcionária de 35 anos que trabalha há seis anos na área de desossa de um frigorífico.

“Respondi que esse não era meu propósito e sim receber um tratamento para que eu pudesse voltar ao trabalho em boas condições. Ele insistiu, dizendo que em nenhum lugar do mundo as lesões no ombro são consideradas como doença ocupacional”, acrescentou.

Marcela afirma também que o tempo todo tentaram minimizar sua lesão.

A tudo isso, é preciso acrescentar que, por lei, se um trabalhador ou trabalhadora apresentar uma lesão derivada da tarefa que realiza, ele receberá a totalidade de seu salário enquanto estiver em tratamento.

No entanto, se a doença que a pessoa sofre não for reconhecida pela entidade seguradora, como é o caso da omalgia, e for encaminhada ao Sistema Nacional Integrado de Saúde, o trabalhador doente receberá não a totalidade, mas 70% de seu salário.

Negam não só o direito ao tratamento, como também afetam o sustento dessas pessoas. É o pacote completo de uma atitude de menosprezo aos trabalhadores e trabalhadoras.

Em 2017, durante uma oficina sobre saúde e segurança no trabalho com foco em lesões por esforço repetitivo, o Dr. Roberto Ruiz, renomado especialista brasileiro em saúde ocupacional e diretor do Departamento de Saúde da Rel UITA, destacou que em casos como esses “é necessário tornar visível o que é invisível, passar do individual para o coletivo e transformar a indignação em ação”.

Em seguida, deixava claro: “é preciso divulgar que as trabalhadoras e os trabalhadores estão adoecendo devido ao trabalho que desempenham, que não é algo pessoal, mas sim um fenômeno coletivo, e que devemos transformar a indignação deles em uma proposta de mudança”.


(*Todos os nomes são fictícios)
¹ O termo “BSE” refere-se ao “Banco de Seguros del Estado”, uma instituição uruguaia responsável pela gestão de seguros e previdência social.