Depoimentos de pessoas fumigadas com este produto abundam ao longo dos anos, da Argentina aos Estados Unidos, da França a Sri Lanka, do Canadá à Índia.
Tais depoimentos são corroborados por estudos científicos independentes, realizados à margem dos laboratórios que trabalham para as empresas da indústria “biotecnológica” ou de organismos que possuem entre seus membros pessoas vinculadas a essas empresas.
Entretanto, em São Francisco, nos Estados Unidos, ocorre nesta semana uma “première mundial”: um tribunal deverá estabelecer se o Roundup é cancerígeno e se a Monsanto, sua fabricante, ocultou deliberadamente esta informação.
A Monsanto é ré em milhares de processos judiciais espalhados pelo mundo inteiro, porém esta será a primeira vez que o seu herbicida Roundup estará sentado no banco dos réus.
Esse processo judicial foi iniciado por Dewayne Johnson, um norte-americano de 46 anos, que aplicou o herbicida por dois anos em um edifício escolar, estando hoje em fase terminal de um câncer. A previsão é que o processo dure pelo menos três semanas.
“Deve fazer 40 anos que a Monsanto sabe que os componentes de base do Roundup são cancerígenos, principalmente o glifosato, sendo causadores de tumores em animais de laboratório. A empresa não só sabe como oculta esta informação. E o pior de tudo: vende a imagem de ser um produto inócuo para a saúde, tendo até pago estudos para demonstrarem esta suposta inocuidade”, disse Brent Wisner, um dos advogados de Johnson.
“Não é por um problema genético ou por uma dessas casualidades da vida” que este homem padece um linfoma incurável”.
“É consequência de ele ter aplicado durante os anos de 2012 e 2014 herbicidas, como o Roundup e o Ranger Pro, ambos produtos da Monsanto, em terrenos pertencentes a uma escola de Benicia, Califórnia”, afirmou o outro advogado da vítima, David Dickens.
O terceiro integrante do estúdio de advocacia em representação de Johnson é Robert Kennedy Junior, sobrinho do ex-presidente John Kennedy. Para Robert Kennedy “ninguém pode se dize surpreso pelo fato de a Monsanto ter tentado ocultar a periculosidade deste produto”.
“Foi o que ela sempre fez”, disse, garantindo que o seu estúdio representa “umas 700 denúncias” contra o Roundup por diversos tipos de câncer (AFP, 9-VII-18);
Para os advogados de Johnson, o mais difícil será provar que a Monsanto não só estava ciente da periculosidade do Roundup, como também a ocultou.
“Legalmente, é bastante difícil responsabilizar uma empresa por casos específicos de câncer ou outras doenças relacionadas com os agrotóxicos”, admitiu Linda Wells, da Pesticide Action Network North America (AFP, 9-VII-18).
A Pesticide Action Network North America batalha diariamente contra as constantes artimanhas utilizadas pelas empresas desta indústria, que fazem lobby no judiciário, no Congresso, e com cientistas, utilizando-se para isso de cifras milionárias.
A legislação do estado da Califórnia obriga as empresas que estiverem cientes da periculosidade provada e presumida de qualquer um de seus produtos a que esta informação conste na embalagem.
Além disso, há três anos o glifosato – princípio ativo do Roundup – foi incluído na lista de substâncias potencialmente cancerígenas, de acordo com a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Cancro), que faz parte da Organização Mundial de Saúde das Nações Unidas.
Os poderosíssimos estúdios de advocacia que defendem a Monsanto alegam não só que “obviamente” a empresa não era ciente da periculosidade de seu produto, como também alegam que a Agencia Federal de Proteção Ambiental dos Estados Unidos “demonstrou” que “não há nada a temer com relação ao glifosato”.
Um dos advogados de Dawayne Johnson fez notar que esta agência supostamente encarregada de velar pela segurança ambiental é a mesma que promove o uso de combustíveis fósseis e nega a existência das mudanças climáticas por aquecimento global.
O processo em São Francisco acontece, também, em um novo contexto: a Monsanto vai sumir.
No início de junho, outra transnacional, a alemã Bayer, comprou a Monsanto por 63 bilhões de dólares. Assim que a operação foi confirmada pelas autoridades da concorrência norte-americana e europeia, a Bayer informou que em agostou ou setembro o nome da empresa, criada em 1901 em Missouri, desaparecerá do mercado.
Não porque a Bayer esteja preocupada com as consequências para a saúde e meio ambiente com o uso dos produtos fabricados pela Monsanto – de fato o Roundup continuará sendo comercializado, como também o herbicida Dicamba, ambos da Monsanto e no banco dos réus nos Estados Unidos1.
Aliás, em termos de genocídio, ambas as empresas possuem uma história de cumplicidade que as aproxima ainda mais.
Assim como a alemã Bayer colaborou com os nazistas durante a segunda guerra mundial, a norte-americana Monsanto é a responsável pela fabricação do chamado “Agente Laranja”, um desfolhante utilizado pelo exército norte-americano nas selvas do Vietnã, exterminando milhares e milhares de pessoas, sem falar nas más deformações e inúmeras sequelas.
“Mas, está claro que o nome da Monsanto não é dos mais simpáticos atualmente, e poderia ser negativo para a imagem da empresa continuar usando-o”, disse um anônimo executivo da transnacional alemã para o portal francês Médiapart.
Ilustração: Gabriel Balla
Nos Estados Unidos, os defensores de Johnson e de dezenas de outros agricultores que entraram com processos civis ou penais contra a Monsanto poderão continuar com suas ações na justiça mesmo após a empresa deixar de existir como tal.
Já nos outros países, pelo menos no plano penal, não acontecerá a mesma coisa.
No caso da França, onde as leis tratam uma empresa desaparecida como uma pessoa falecida, penalmente não poderá mais ser julgada penalmente, apenas no âmbito civil.
Cientes disto, William Bourdon, Amélie Lefebvre e Bertrand Ripolt, os advogados da família do menino Théo Grataloup, preferiram escolher entrar com uma ação civil contra a Monsanto, em junho deste ano, nos tribunais franceses.
A empresa é acusada de ser a responsável pelas deformações que, desde seu nascimento, há onze anos, Theo padece.
Os Grataloup são uma família de fortes convicções ecologistas que há anos acreditaram na publicidade enganosa do herbicida Glyper, um derivado do Roundup e que contém glifosato, apresentado por seu fabricante como o “primeiro herbicida biodegradável concebido no mundo”, e pulverizaram o campo que possuíam no departamento de Isere.
O casal aplicou esse produto por muitos anos, inclusive durante a gravidez de Sabine, mão de Théo.
Quando Théo nasceu, em 2007, apresentou malformações, a ponto de ter sido operado 54 vezes. Seu cirurgião, Rémi Dubois aformou “jamais ter visto algo assim antes” (Médiapart, 14-VI-18).
Os médicos tiveram que separar os sistemas digestivo e respiratório do recém-nascido e submetê-lo a uma traqueotomia com apenas três meses de vida.
Théo levou quatro anos para sair do serviço de reanimação do hospital que o tratava e dois mais para deixar de se alimentar por sonda.
Com base em 15 pesquisas médicas publicadas entre 2002 e 2017, Dubois afirmou para a justiça de seu país no mês passado que “a relação entre o glifosato e o síndrome polimalformativo apresentado por Théo ao nascer é altamente provável”.
Sabine foi uma das dezenas de pessoas provenientes do mundo inteiro que declararam no Tribunal Monsanto, uma “instancia cidadã” em Haia, Holanda, de 16 a 18 de outubro de 2016, visando a determinar a responsabilidade da transnacional norte-americana na fabricação e comercialização de produtos nocivos para a saúde e o meio ambiente.
O tribunal, integrado por cinco juízes, funcionou seguindo os mecanismos da Corte Penal Internacional, presente também em Haia.
Após escutar o depoimento das vítimas de pulverizações e o parecer de diversos especialistas, os juízes condenaram a transnacional por “ecocídio”, e por “implementar práticas com alto impacto negativo sobre o direito a saúde, alimentação e ambiente saudável”.
Émilie Gaillard, uma das organizadoras do tribunal, admite que essa resolução não terá consequências jurídicas, porém “um dos objetivos principais dos promotores dessa iniciativa foi alcançado: fazer com que as vítimas das práticas da Monsanto e os cientistas que lutam com poucos recursos contra esta gigante possam se unir”.
“Sabine Grataloup, por exemplo, conheceu em Haia Maria Liz Robledo, uma argentina cuja filha, Martina, nasceu com malformações congênitas no esôfago, muito similares às do Théo.
A casa de Robledo, na província de Buenos Aires, está rodeada de embalagens de agrotóxicos e herbicidas da Monsanto, utilizados para pulverizar soja e milho transgênicos produzidos também com sementes da Monsanto.
A Red de Pueblos Fumigados argentinos luta com todas as suas forças contra a transnacional há anos, com a ajuda de organizações sociais e de um grupo de cientistas que se negam a ser cooptados pela indústria “biotecnológica”.
De acordo com o neonatologista Medardo Ávila, da Red de Médicos de Pueblos Fumigados, desde que começaram a pulverizar com produtos que contêm glifosato, nas regiões agrícolas argentinas, “há três vezes mais casos de câncer nas cidades e de cada 10 nascimentos três são de crianças com malformações, diante de uma média de 2 por cento em outras regiões” (AFP, 6-VII-18).
Os integrantes destas redes, os produtores de soja argentinos e as corporações empresariais da indústria são tratados como “ecoterroristas”.
Esse mesmo apelido é dado aos responsáveis da Monsanto na França por Paul François, um produtor de cereais da região de Charente, que denunciou a transnacional por tê-lo intoxicado com Lasso, outro herbicida produzido pela Monsanto, transnacional proibida no Canadá em 1985 e na Bélgica em 1992.
Em 2012, um tribunal em Lyon condenou a empresa a indenizar o agricultor, uma sentença confirmada em 2015, porém anulada pouco depois pela Corte de Cassação Francesa.
O caso voltará a ser examinado pela justiça em 2019.
Os advogados de François se concentrarão em tentar provar que a Monsanto estava ciente da periculosidade do Lasso.
“Vivemos em uma época em que se protege cada vez mais o sigilo empresarial”, observou Bertrand Repolt, um dos defensores do agricultor francês.
Entretanto, ele e seus colegas poderão incluir em suas alegações não só a volumosa documentação apresentada ao Tribunal Monsanto como também as informações reveladas pelos Monsanto Papers, centenas de documentos internos da transnacional publicados em 2017, durante um recurso de habeas data, apresentado nos Estados Unidos.
O jornal francês Le Monde “processou” essas informações, correios eletrônicos, memorandos secretos e revelou a metodologia utilizada pela transnacional para manipular cientistas e organizações, desprestigiar pesquisadores críticos e ocultar informações.
“Dessa investigação fica claríssimo que pelo menos desde 1999 a Monsanto sabia que seu produto tecnológico é daninho para a saúde e o meio ambiente, em especial o glifosato, mas também os surfactantes associados”, disseram os advogados da família Grataloup.
“Esperemos que a justiça assim o entenda”.
Em dezembro passado, a Comissão Europeia renovou a licença do glifosato até final de 2022. A medida foi votada por 18 países, mas alguns dos nove que a rejeitaram disseram que não irão acatar. É o caso da França, cujo governo ratificou sua decisão de proibir o uso do herbicida a mais tardar em três anos.
Com a compra da Monsanto pela Bayer, o setor agroquímico ficou reduzido a três grandes grupos. Em 2017, Dow Chemical se uniu com a também norte-americana DuPont; a ChemChina comprou a suíça Syngenta. Com 115 mil funcionários e com uma rentabilidade de 53 milhões de dólares anuais, o grupo Bayer-Monsanto será o principal do setor.“Os três novos conglomerados controlarão mais de 60 por cento do mercado das sementes e a agroquímica a nível planetário, fornecerão quase todos os organismos geneticamente modificados e terão a maioria das patentes sobre as plantas. Com isso, poderão impor suas condições aos agricultores e aos estados com mais intensidade do que já o fazem”, denunciou a fundação Heinrich Boll, vinculada aos Verdes alemães.
“O glifosato é o maior escândalo sanitário de toda a história da indústria química. É cancerígeno, é um perturbador endógeno que atua como um hormônio (por isso há tantos casos de crianças que nascem com malformações congênitas ou a produção de tantos abortos espontâneos), absorvendo os metais bons como o ferro, que precisamos para o corpo, sendo também um agende antibiótico muito forte que acaba com as boas bactérias do solo. Não é comum que um agrotóxico reúna estas quatro funções.”
(Declarações de Marie Monique Robin, documentarista e pesquisadora francesa, para a publicação resumenlatinoamericano.org, em 2016. Robin é autora, entre outros trabalhos, de El mundo según Monsanto e El glifosato en el banquillo. Este último, que foi precedido pelo documentário Le Roundup face á ses juges, reúne os depoimentos apresentados ao Tribunal Monsanto).
1- De acordo com um levantamento da Universidade de Missouri em 2017 havia 2.700 denúncias contra a Monsanto devido aos desastres causados pelo Dicamba.