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A hora da solidariedade e o apoio fraterno

As veias abertas do Rio Grande do Sul

Carlos Amorín

24 | 5 | 2024

“À medida que progride o desbaste das montanhas, nascentes e
margens dos rios, à medida que desaparecem os últimos banhados,
outros grandes moderadores do ciclo hídrico, a paisagem vai se
aproximando cada vez mais a uma situação desértica e os rios estão
ficando mais lamacentos e irregulares. Onde havia um fluxo regular,
ocorrerão então, alternadamente, secas e enchentes catastróficas.
Somente revertendo o processo de demolição das paisagens pode fazer
retroceder a corrida em direção a calamidades sempre maiores”.
(José Lutzenberger¹ – 1974)


Foto: AP

Isso mesmo, veias abertas é ao que se assemelham hoje os afluentes da bacia do rio Guaíba: um sistema circulatório de água arrebentado por décadas de ações e políticas depredadoras. Mesmo nestes dias, as águas começam a descer, o coração do Rio Grande do Sul (RS) late levemente de novo, sua população conta as vidas perdidas e se prepara para o imenso trabalho que está por vir. Haverá tempo para balances, responsabilidades e mais análise, mas hoje é a hora da solidariedade e do apoio fraterno.

O mais recente

Os números são alarmantes: até agora foram contados 157 mortos e 88 desaparecidos, 538 mil desalojados, 77 mil pessoas abrigadas em refúgios provisórios, 2.600 estabelecimentos agrícolas devastados, quase 800 centros de saúde danificados, o PIB nacional seria reduzido por volta de 0,2% e 0,3%, o PIB agrícola do país poderia cair 3,5%, e as perdas financeiras previstas  neste momento são 1,7 bilhões de dólares.

À medida que a água vai descendo se tem maior precisão em relação aos danos causados pela enchente. A maior parte das estradas e caminhos estão destruídos.

Foi calculado que o montante que desembolsará o governo federal para ajuda e reconstrução oscilará entre 14 e 19 bilhões de dólares.Mais chuva se espera em vários pontos do Estado do Rio Grande para esta terça-feira, dia 21, algumas de até 100 milímetros.

O sistema fake

A enorme maioria dos meios de comunicação subsidiados —direta ou indiretamente— pelos governos em exercício impõem o relato de que as inundações no RS são consequência exclusiva da mudança climática, algo assim como uma “ira da mãe natureza” diante da qual não há nada a fazer mais do que se resignar.

Por trás desta falta de informação massiva há vários aprendizes de Pôncio Pilatos², ocultos por uma cortina de fumaça que protege uma obscura rede de interesses econômicos e políticos.

É claro que, desde o fim de abril a meados de maio choveu como nunca na região, mas não foi esta a primeira enchente fora de controle nos anos recentes. Pelo contrário, a “mãe natureza” vem dando incessantemente avisos de que as águas do Guaíba, o rio que flui junto a Porto Alegre (POA), e de que toda sua bacia, desce sem nenhuma contenção.Há inúmeros estudos, pesquisas e trabalhos universitários que foram apresentados aos órgãos políticos alertando sobre o rico crescente de uma catástrofe como a atual, advertências que não só nunca foram atendidas, como também foram aprofundadas ações e decisões governamentais que agravaram as ameaças.

A catástrofe, em grande medida, é resultado direto do saqueio desenfreado provocado por grandes empresas capitalistas e suas representantes no comando do Estado, vinculados ao latifúndio corporativo, à especulação imobiliária, ao extrativismo e, portanto, à mercantilização da vida.O Rio Grande do Sul é um Estado cujos biomas Pampa e Atlântico estão sendo destruídos pela mineração, pela monocultura de soja e eucaliptos e pela pecuária.

Além disso, os sucessivos governos estaduais e municipais das cidades atingidas, com o aval dos governos federais em exercício, têm sido responsáveis pelo devastamento da vegetação ribeirinha, pelo acúmulo de sedimentos nos rios, pela destruição de áreas de preservação permanente, além de vender às empresas privadas concessões de gestão da água, de energia eléctrica e loteamentos para as empresas imobiliárias. Tudo isso, sem os estudos pertinentes de impacto ambiental.


Foto: Anselmo Cunha/AFP/Getty Images
Atirem no Guaíba

As áreas próximas ao rio Guaíba sofreram um processo relâmpago de degradação quando a corrente d’água em volta de POA foi reclassificada como “lago”. Esta reclassificação possibilitou que a faixa da costa protegida passara de 500 metros a 30 metros. Desse modo, foi arrasada toda a vegetação ribeirinha, a qual protege das crescentes e ao mesmo tempo é capaz de absorber as águas de escoamento.

Em seu lugar atualmente são construídos edifícios de moradias para a classe média alta, passeios comercializados, um porto para embarcações esportivas, etc. Ou seja, a mercantilização das áreas naturais, contrária à opinião da enorme maioria de técnicos e especialistas.

Não chama a atenção, já que a mesma política é aplicada no resto do Estado, cujo território estava coberto mais de 69% pelo bioma “Pampa” —regulador dos ciclos d’ água— que nos últimos anos ficou reduzido a 30% de sua extensão original.

O território devastado foi ocupado prioritariamente pelo cultivo de soja. O Rio Grande do Sul é o segundo maior produtor de grãos do país, com uma safra estimada para 2024 de 20 milhões de toneladas.

 A safra de soja estimada em todo o país é de 153,9 milhões de toneladas, números que só são possíveis através da concentração criminosa de terras nas mãos de poucos e da pressão exercida pelos latifundiários contra a vida e a biodiversidade.

Dinheiro para quem tem dinheiro

A visão neoliberal dos territórios é essencialmente mercantil. Tudo o que existe no planeta está lá para ser transformado em dinheiro, incluindo os seres humanos. Os lucros são enormes. Desde os latifundiários, até os bancos e financiadores enriquecem-se apropriando-se dos recursos naturais e dos fundos públicos.

Quando ocorrem danos, no entanto, os custos são socializados, até os mais pobres terão que pagar os empréstimos adquiridos para mitigá-los, repará-los.

Os subsídios à agricultura são um reflexo da apropriação dos recursos públicos por corporações e privados. O atual Plano Safra 23/24 será distribuído assim: enquanto o agronegócio receberá 71 bilhões de dólares, a agricultura familiar receberá um pouco mais de 15 bilhões. Quem tem o compromisso de alimentar o povo brasileiro com o produto de seu trabalho? … Exatamente. Quem alimenta as contas bancárias de poderosos e políticos corruptos? … mais uma vez, exatamente.

O seu é meu, e o meu é meu

Essa é a «lei dos de cima», implacável, sem compaixão ou empatia de nenhum tipo. Tudo é sacrificado no altar do lucro próprio. Como uma avalanche, o neoliberalismo arrasa comunidades indígenas e quilombolas, submetidas a uma pressão constante para tirar suas terras ancestrais, contaminando suas fontes de água com mineração ilegal, e agora agravando esta inundação que, afirmam, afetou 800 delas causando perdas de plantações, moradias, estradas, etc.

O Movimento Sem Terra (MST) da região anuncia a perda de 17% de sua safra de arroz orgânico, que ainda estava no campo, e alerta sobre o impacto em numerosas instalações de armazenamento do que já foi colhido, então ainda é prematuro quantificar as perdas totais.

Muitos produtores orgânicos e assentamentos do MST também relataram a perda de culturas de hortaliças, que normalmente abastecem feiras locais, que representam a principal fonte de alimentos frescos para os moradores locais.

Diante da devastação quase «programada», são anunciadas assistências internacionais (empréstimos) de 3,5 bilhões de dólares destinadas à mitigação e reparação dos danos. Mesmo assim, afirma-se que o governo federal construirá quatro «cidades provisórias» em locais seguros para abrigar os quase 20 mil deslocados.

Que tudo continue igual

Remendos para voltar à «normalidade», a mesma que deu à atual inundação status de catástrofe, que protegerá os privilégios de poucos, continuando políticas territoriais e ambientais cujos objetivos essenciais são garantir «o direito ao lucro» dos mesmos de sempre, e continuar destruindo direitos sociais e sindicais.

No entanto, a vida de milhares de gaúchos terá mudado para sempre: desde pequenos e médios agricultores cujas terras e instalações levarão anos para recuperar, se conseguirem; para pequenos e médios pecuaristas, muitos deles com perdas totais; para trabalhadoras e trabalhadores rurais e das cidades que ficarão sem  emprego durante os meses de reconstrução; para pequenos e médios comerciantes rurais e urbanos com perdas irreparáveis de estoques; para milhares de cidadãos e cidadãs com casas que, se puderem ser recuperadas, terão que ser reequipadas após os efeitos da água e do barro.

Talvez tudo isso não seja mais do que outro anúncio de uma «nova normalidade», a das catástrofes recorrentes causadas pela aliança letal entre a mudança climática e as políticas neoliberais.

A menos que la sociedad organizada, el pueblo en su diversidad, tome este toro por los cuernos y diga: ¡Basta!


¹Engenheiro agrônomo do Rio Grande do Sul, ecologista desde o início, mestre, companheiro e amigo da Rel UITA falecido há exatamente 22 anos. Sentimos sua falta.
²Prefeito romano da província da Judeia que lavou as mãos antes de condenar à morte a Jesus, aceitando a sugestão da assembleia de anciãos judeus.