Um extenso relatório da revista Plan V explica que um mês após o protesto indígena e popular, entre os dias 3 e 13 de outubro, as Forças Armadas equatorianas assinaram três contratos para se armarem e aumentar a “capacidade operacional das unidades táticas na execução de operações militares em caso de novos distúrbios”.
O objetivo do Exército é formar 204 equipes de combate, cada uma composta por 20 pessoas, num total de 4.080 militares antimotim, "representando 15 por cento de todo o pessoal empregado em operações militares internas" (https://bit.ly/2v56pmE).
No relatório que justifica a compra de equipamentos antimotim, o Exército do Equador afirma que a aquisição desse material é para “operações contra tumultos, motins e insurgências, porque permite dissuadir grupos de manifestantes que pretendem alterar a ordem pública". (https://bit.ly/2v56pmE).
O coronel Mario Pazmiño, ex-diretor de Inteligência do Exército, compara os manifestantes a grupos de “terrorismo urbano e sedição”, para cuja neutralização as forças armadas e policiais se dedicam a “seguir as principais informações das mídias sociais” e a “analisar o discurso indígena”.
O novo comandante da Polícia, Patricio Carrillo, mencionou o conceito-chave: precisamos de mais conhecimento sobre as “ameaças híbridas” e os riscos que representam para o país.
As forças armadas e policiais da América Latina entraram no conceito de “guerra híbrida”, surgido em 2014 para explicar o que aconteceu na região de Donbas, na Ucrânia, onde a Rússia impôs microestados em sua fronteira com base na mobilização militar e social em áreas onde a língua e a cultura russas predominam.
As Forças Armadas do Brasil trabalham profusamente com esse conceito, que é vantajoso para colocar qualquer luta popular no contexto de uma “guerra híbrida”, que visa a derrubar o poder estabelecido, justificando assim a repressão aos movimentos sindicais e sociais.
O general da reserva Carlos Alberto Pinto Silva, ex-comandante do Comando Militar do Oeste, do Comando Militar do Sul e do Comando de Operações Especiais, escreveu um artigo intitulado "Insurgência Moderna" em que explica a guerra híbrida (https://bit.ly/31mv0zC).
Os militantes sociais deveriam estudar esses textos porque eles nos envolvem.
O ponto de partida do General Pinto, que como se pode ver não é qualquer militar, é que para as esquerdas “o caminho pacífico para a conquista do poder se desmoronou”.
Ele se refere à destituição da ex-presidente Dilma Rousseff e aos julgamentos contra seu antecessor Lula da Silva, que, em sua opinião, foram a forma de impedir que o “socialismo marxista” se mantivesse no poder.
Em seguida, ele explica as duas formas de guerra híbrida: a violenta ou hard e a soft ou pacífica.
Consiste em “protestos, manifestações sindicais e uso de movimentos sociais”.
Ambas as formas estão unidas pelo objetivo estratégico de “desestabilizar os governantes, desacreditar as autoridades e criar caos na sociedade, provocando uma crise política”.
Todo o repertório de ação coletiva ocorrido ao longo dos últimos dois séculos é considerado pelos estrategistas militares como “insurgência moderna”.
No referido artigo do general Pinto, os exemplos de desestabilização e insurgência são as ocupações dos centros de estudo de escolas secundárias no Brasil em 2016.
Segundo o general, os insurgentes tentam espalhar um “vírus político” que contagiará a sociedade, cujo objetivo é “a implosão do Brasil por meio da convulsão social em coordenação com o potencial dos protestos da população, principalmente daqueles descontentes com o governo.”
O passo final seria a conquista do poder.
Defensores da teoria da guerra híbrida argumentam que sempre há estados por trás de qualquer protesto, no caso da América Latina seriam Cuba e Venezuela, apoiadas pela Rússia e, eventualmente, pela China.
Eu não gostaria de entrar em considerações éticas ou subjetivas sobre essa doutrina, nem nos desviar para analisar a hipocrisia e o cinismo dessas formulações.
O que pretendo é destacar quatro questões.A primeira é que nos deparamos com uma concepção de segurança compartilhada pelos principais exércitos do Ocidente e particularmente os da América Latina.
A guerra híbrida substitui a doutrina da segurança nacional a partir do período das ditaduras e a teoria das guerras assimétricas entre estados e grupos irregulares, como as guerrilhas e o narcotráfico.
A segunda é que legitima a intervenção militar na ordem interna e, pior ainda, considera qualquer manifestação popular como parte de um projeto de desestabilização do Estado.
Para combater essa possibilidade, os governos criaram toda uma legislação antiterrorismo que se aplica às lutas sociais, como vem acontecendo em vários países, por exemplo, como o ex-presidente Rafael Correa atuou diante das lutas do movimento indígena.
A terceira é que essa estratégia de guerra híbrida mostra que as forças armadas não mudaram com respeito ao período das ditaduras, quando violaram maciçamente os direitos humanos.
A terceira é essa estratégia de guerra híbrida que mostra como as forças armadas não mudaram nesse sentido desde o período das ditaduras, quando violaram maciçamente os direitos humanos.
Após três décadas de governos democráticos no Cone Sul e uma década e meia de governos progressistas, os militares permanecem apegados aos seus antigos reflexos antipopulares.
Finalmente, o mais importante, nós.
O Estado, a classe dominante e seus aparatos coercitivos não estão dispostos a aceitar nem sequer a vitória nas urnas das forças políticas dispostas a fazer mudanças estruturais.
Tanto a via armada quanto a pacífica para mudar o mundo estão vedadas.
O que vamos fazer? Claro, não estou defendendo a aceitação da realidade atual. Acredito que está na hora de debatermos seriamente os caminhos a seguir.