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Cecilia Gárgano, uma historiadora do agronegócio

“Argentina encabeça o ranking dos países que mais produziram desmatamento”

A pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET) traça a história do extrativismo agrícola no país, como foco na apropriação privada de conhecimentos científicos que deveriam pertencer à sociedade ou ao Estado.

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28 | 06 | 2022


Imagen: Allan McDonald | Rel UITA

“Queimadas, secas e enchentes” é o que brota da Caixa de Pandora da historiadora Cecilia Gárgano no prólogo do livro recém-publicado El campo como alternativa infernal – Pasado y presente de una matriz productiva ¿sin escapatoria? (Imago Mundi, 2022).

"Da impotência que nos gera, ao contemplarmos esse desastre que não tem nada de acidental e que é multiplicador da assimetria social, também surge este livro", explica a autora e pesquisadora do Conicet, doutora em História pela Universidade de Buenos Aires e especialista em história recente da ciência e em problemáticas socioambientais do espaço rural argentino.

Talvez seja essa dupla formação que lhe permite historicizar as raízes até o presente do agronegócio, de 1960 até os dias atuais, tendo nos anos 1990 o patamar máximo de entrega e massificação dos agroquímicos (ou agrotóxicos, para dizer de forma mais direta).

Ao mesmo tempo em que traça a história recente do extrativismo agrícola na Argentina, Gárgano vê nessa história a da apropriação privada de conhecimentos científicos que em um mundo melhor deveria pertencer à sociedade, ou ao Estado.

Embora o livro pretenda cortar o mato (desculpe a comparação) para obter um campo mais saudável, menos tóxico, mais social que o atual, antes de fazê-lo, Gárgano estuda alguns casos específicos de envenenamento por biocidas, alguns dos quais deixam ela de cabelo em pé.

-O que é o agronegócio?
-O livro busca entender como a atual matriz produtiva agrária hegemônica foi construída com o intuito de ser o único destino possível para o nosso país.

Diante de um dispositivo que apresenta essa matriz como natural, o livro busca historicizar a sua genealogia e identificar os mecanismos materiais e discursivos que a construíram e a legitimaram. Para tanto, o livro analisa o passado recente, da década de 1960 até os dias atuais, dentro do escopo do “agronegócio”.

-Como esse processo evoluiu?
-Nos anos 60, inaugurou-se na Argentina a "revolução verde", o processo mundial exportado pelos Estados Unidos, sendo um marco da "quimiquização" da agricultura, devido ao uso intensivo de pesticidas.

O livro se detém em um segundo momento, isto é, na última ditadura civil-militar.

Foi um ponto de inflexão incontornável em nossa história. Por um lado, como o disciplinamento moldou as formas de conceber a agricultura a partir das políticas de governo para a pesquisa e extensão rural. E, por outro lado, como a privatização dos conhecimentos científicos gerados nesse arcabouço foi se tornando central para a matriz agrária produtiva.

O terceiro momento é do início do boom da soja, iniciado na década de 1990. Um dos focos da pesquisa é analisar como a ciência empresarial gerada a partir do Estado operava (e opera) como insumo fundamental para o agronegócio.

-A segunda parte do livro se concentra naqueles que sofrem os danos?
-De fato, o olhar se desloca para os próprios territórios, a partir de algumas experiências vigentes de vida e de resistência nas localidades de Santa Fé, Entre Ríos e Buenos Aires que estão no centro do conflito.

Os depoimentos que são replicados revelam um único quebra-cabeça, o da depredação ambiental, sanitária e social.

Uma fronteira que nunca termina de crescer

-Quais são as práticas que esta(s) modalidade(s) implica(m)? Que efeitos essas práticas produzem?
-A extensão ininterrupta da fronteira agrícola desde a década de 1970 gerou processos de êxodo rural forçado, de criação da desigualdade social, devido à estrangeirização e à concentração da terra.

Sincronicamente, com um salto qualitativo a partir da expansão da monocultura da soja, a Argentina lidera o ranking dos países que mais desmatam e mais utilizam pesticidas.

O que as comunidades chamam de “agrotóxicos” e que as empresas e algumas esferas estatais chamam de “fitossanitários” vem gerando a contaminação sistemática das águas (incluídas as águas subterrâneas para consumo), terras e corpos.

Enquanto esses efeitos nocivos são socializados compulsivamente, os lucros milionários são apropriados por uma fração altamente concentrada da sociedade.

Embora as mesmas patologias na população associadas às mesmas práticas produtivas se repitam em todo o país, à medida que as queimadas e as enchentes ocorrem, são apresentadas como fenômenos isolados. Uma política da fragmentação operando por meio de uma operação tripla.

Dissociações funcionais

-A que você se refere?
-Em primeiro lugar, é feita uma dissociação entre o nosso presente e o nosso passado recente, desconsiderando as inúmeras questões que discrepam das referidas formas de produção.

Tal dissociação acarreta um presente que parece não ter história, nem qualquer outro futuro possível.

Em segundo lugar, fragmenta sistematicamente as experiências comuns por meio de mecanismos (des)reguladores e jurídicos que obrigam as populações a gerarem por si só, localidade por localidade, as evidências científicas dos danos sofridos.

Tal armadilha de evidências não só viola o princípio da precaução, mas também obriga as populações a financiar sozinhas os estudos que o Estado exige e ao mesmo tempo não gera (como o bingo de Lobos que o livro reconstrói).

Neste arcabouço kafkiano, por exemplo, os cultivos transgênicos tolerantes a agrotóxicos são aprovados para todo o território nacional, mas dependendo da localidade em que vivemos, as fumigações agrícolas podem ser realizadas a 0,500 ou a 2.500 metros.

Vemos que apesar de uma localidade, como aconteceu em Pergamino, ter demonstrado que a água que a população consome não é mais potável devido à quantidade de pesticidas presentes nela, outra localidade vizinha e exposta à mesma situação estrutural carece de qualquer tipo de proteção.

Em terceiro lugar, constatamos que as transformações materiais homogeneízam os territórios fragmentados: aplanam suas paisagens, seus habitantes, seus modos de vida. Duas operações, fragmentar e homogeneizar, que avançam simultaneamente.

Leis sob medida

-Existe um lobby do agronegócio que busca tornar as leis favoráveis ​​a eles?
-Se algo explica o fato de, em meio aos mais graves incêndios florestais da história argentina, a Lei de Zonas Úmidas ainda hoje continuar engavetada, é a articulação efetiva do lobby do agronegócio.

Por exemplo, como vimos no Delta do Paraná, com o setor imobiliário, o marco legal e regulatório/desregulatório é peça chave para analisar o extrativismo em geral e o agronegócio em particular. Um arcabouço que não por acaso se estruturou na década de 90 e que vem se sustentando como política de Estado.

-O número de doentes e de óbitos por fumigação com agrotóxicos é conhecido?
-Não, não é conhecido. Também não existem dados oficiais sobre as quantidades de pesticidas aplicados, nem sobre a sua presença em frutas e verduras.

A falta sistemática de dados é a outra cara da moeda, levando a população que denuncia danos à sua saúde a ter que gerar por si própria as evidências causais e precisas.

Para estabelecer se a água que consumimos é potável ou não, o Código Alimentar Argentino usa uma lista de moléculas de substâncias em relação aos valores limite toleráveis ​​de traços de pesticidas.

Nesta lista não estão as substâncias em uso há mais de 25 anos no agronegócio argentino: nem o glifosato, nem a atrazina, e nem nenhuma das tais substancias em uso estão na lista.

Também não existem ferramentas que deem conta dos efeitos da exposição crônica e das baixas doses, nem do efeito da mistura destes pesticidas, apesar de serem usados ​​em "coquetéis" (combinados entre si) e, apesar de existirem pesquisas relevantes como as da equipe do Dr. Lajmanovich (UNL), que demonstram seu efeito sinérgico. Essa articulação entre anomia e norma também é fundamental para a vigência desta matriz produtiva.

Depredação da saúde

-Os transgênicos, também conhecidos como OGM (Organismos Geneticamente Modificados), são mais perigosos que o glifosato?
-A pergunta que não quer calar é: quantos cultivos transgênicos foram aprovados em nosso país e quais deles foram projetados especificamente para serem tolerantes a pesticidas (principalmente herbicidas como o glifosato)?

Da soja RR (1996) até o presente momento, foram autorizadas 65 variedades transgênicas comerciais. Mais de 80 por cento são tolerantes a pesticidas. É a norma, não a exceção.

Esse uso intensivo continua intensificado a depredação da saúde. Enquanto isso, as promessas de desenvolvimento permanecem ausentes.

A alternativa infernal trazida para o campo argentino é a falsa encruzilhada que apresentam para nós, quando temos que escolher entre intensificar essa matriz produtiva ou ficar sem PIB.

Quando na realidade essa crise já nos habita e é gerada precisamente por esses padrões de acumulação, pela geração constante de falsas soluções para sair do extrativismo com mais extrativismo, que nos tornam mais dependentes e mais depredados ao mesmo tempo.

Argentina pioneira

-A permissão dias atrás para o plantio massivo e comercialização do HB4 é a primeira a ser dada no mundo? Qual é a política no resto do mundo em relação a esse transgênico?
-A Argentina é o primeiro país do mundo em aprovar o trigo transgênico HB4, resistente à seca e tolerante ao glufosinato de amônio, um herbicida 15 vezes mais tóxico que o mais famoso glifosato.

É um excelente exemplo para vermos como as velhas promessas da "revolução verde" (acabar com a fome e alcançar o "desenvolvimento") são reeditadas hoje, com o acréscimo da promessa de sustentabilidade que o capitalismo incorporou de forma tão eficaz.

O próprio setor do trigo expressou sua rejeição, pois há fortes restrições (por exemplo na UE) para sua comercialização.

Para além desta preocupação centrada na rentabilidade, está a capacidade de decidir como queremos que seja o nosso futuro imediato, que é o que está em jogo. Por seu caráter experimental, e fundamentalmente pelo que significa reforçar esta matriz produtiva intensiva em agrotóxicos, apesar de todos os alertas já terem sido abertamente ignorados.

Ou seja, trata-se de uma nova experiência a céu aberto com o agravante de que, 26 anos após a sojização da agricultura, os danos estão aí, visíveis, sendo expostos pelas populações atingidas, pela agricultura familiar e camponesa, que produz alimentos saudáveis, e também expostos por um grande número de estudos científicos (mais de 1400 cientistas aderiram ao documento do Coletivo Trigo Limpo) e por uma ação coletiva que manifestou sua rejeição e que não tem voz nem voto em nenhuma instância oficial.

Conivências entre Universidades e indústrias

-O HB4 é de origem argentina? Foi gerado em qual laboratório?
-Foi obtido por pesquisadores e pesquisadoras do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) e da Universidade Nacional do Litoral (UNL), em convênio com a Bioceres por meio da INDEAR S.A., empresa do Grupo argentino Bioceres, que opera em parceria com o Conicet no Instituto Nacional de Agrobiotecnologia, com sede no prédio do CCT do Conicet, em Rosário, sendo responsável por seis variedades de culturas transgênicas, cinco delas tolerantes a herbicidas (glifosato e glufosinato de amônio).

Um de seus sócios é Gustavo Grobocopatel, presidente da Los Grobo. O financiamento estatal, a participação dos capitais nacionais e as receitas potenciais de divisas são os pilares para considerar o evento como de "desenvolvimento nacional".

Uma espécie de teoria do derrame aplicada ao campo tecnocientífico, que nunca chega.

Parece que se tirarmos da equação as grandes transnacionais, que estão longe de ser marginais, os riscos ambientais, sanitários e territoriais desaparecem.

Recuperar por baixo o que é cortado por cima

-Que alternativas existem além do extrativismo mineral e do modelo que vocês chamam de “agricultura neoliberal”?
-Os extrativismos não têm licença social. Vimos em Chubut, em Mendoza, em Mar del Plata, antes nas Malvinas Argentinas.

Essa reivindicação, à medida que cresce e se fortalece desafiando as referidas políticas de fragmentação, recuperando por baixo o que é cortado por cima, é construída como uma mobilização "estrangeirizante", "elitista", "de barriga cheia", ou é reprimida, como vimos. em Andalgal.

No entanto, é um movimento que tem a capacidade de questionar a mercantilização de nossas existências e territórios vitais, produzindo reapropriações do comum. Nisso reside o seu poder.

É a partir das experiências promovidas pela agroecologia, como a partir das que questionam outros circuitos de produção ou consumo, que é possível disputar as escalas de intervenção, de habitar, de produzir. É para esta direção que este livro aponta, visando a contribuir no exercício de desnaturalizar, de repolitizar e de reunir.

Quem é Cecilia Gárgano

Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (UBA) e doutora em História também pela UBA. Desde 2017, Cecilia Gárgano se desempenha como pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet). Professora da Escola de Humanidades da Universidade Nacional de San Martín (Unsdam), onde coordena o Programa de Pesquisa do Laboratório de Pesquisa em Ciências Humanas (LICH – Unsam – Conicet) “Conflictos socioambientales, conocimientos y políticas en el mapa extractivista argentino”, junto ao seu amigo e colega Agustín Piaz. Ela também participa de diferentes espaços coletivos, visando a produção de conhecimentos críticos a serviço de uma transformação social.


(Publicado pelo jornal Página 12, em 28 de junho de 2022. A tradução ao português, os destaques e manchetes são da Rel UITA).