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A Operação Condor: os casos emblemáticos de Goulart e Neruda

Após a morte de Kissinger, espera-se que os Estados Unidos desclassifiquem arquivos

O pesquisador brasileiro Jair Krischke está convencido de que uma nova fase de investigações se abrirá após o falecimento do ex-Secretário de Estado norte-americano.

Darío Pignotti – Página 12

07 | 12 | 2023


Foto: Página 12

Com a morte de Henry Kissinger, “uma nova fase se abrirá” nas investigações, permitindo “o acesso a mais detalhes”; sobre o Plano Condor. É o que especula Jair Krischke, o maior entendido no assunto do Brasil e uma das referências mundiais sobre os assassinatos e desaparecimentos perpetrados em ações conjuntas pelas ditaduras sul-americanas nas décadas de setenta e oitenta.

Que o ex-Secretário de Estado e conselheiro de Segurança Nacional tenha falecido na semana passada aos cem anos em sua residência em Connecticut “é um fato que selou sua impunidade, aliás, impedindo definitivamente sua investigação judicial. Por outro lado, tornará mais factível a desclassificação dos arquivos mantidos pelos Estados Unidos a sete chaves durante décadas”, afirma Krischke nesta entrevista ao Página12. Krischke foi consultor da justiça argentina e testemunha perante a corte italiana nos processos relacionados com a Operação Condor.

Que o ex-Secretário de Estado e conselheiro de Segurança Nacional tenha falecido na semana passada aos cem anos em sua residência em Connecticut “é um fato que selou sua impunidade, aliás, impedindo definitivamente sua investigação judicial. Por outro lado, tornará mais factível a desclassificação dos arquivos mantidos pelos Estados Unidos a sete chaves durante décadas”, afirma Krischke nesta entrevista ao Página12. Krischke foi consultor da justiça argentina e testemunha perante a corte italiana nos processos relacionados com a Operação Condor.

“Recordemos o assassinato do presidente (John Fitzgerald) Kennedy, que completou 60 anos de sua morte em novembro. Inicialmente, o governo dos Estados Unidos criou a Comissão Warren para encobrir tudo, afirmando que um atirador solitário foi o responsável pelo crime.

Depois, começaram a surgir documentos secretos e hoje em dia há um consenso de que houve uma conspiração. Receio que com Kissinger acontecerá o mesmo. Atualmente, há suspeitas de que esteve envolvido com a Operação Condor. Nos próximos anos, possivelmente será demonstrado que foi a pessoa chave dessa rede terrorista”.

“Desde o meu ponto de vista, os grandes crimes da Operação Condor foram em alguma medida ideia de Kissinger. E, de não ser assim, ele estava ciente dos atentados que estavam sendo planejados”, especula o investigador brasileiro.

Goulart e Neruda

Havendo tantos casos pendentes de esclarecimento, “quais deveriam ser investigados prioritariamente?“, perguntou este jornal.

“As mortes do ex-presidente brasileiro João Goulart e do escritor chileno Pablo Neruda —destaca Krischke— permanecem encobertas por uma nuvem criada para confundir a opinião pública”.

Mas depois de ter acompanhado os dois casos com especial interesse, considero que, possivelmente, ambos tenham sido envenenados, assassinados de forma meticulosamente planejada pela "Operação Condor".

No caso de Goulart, um dos agentes encarregados de espioná-lo de perto após deixar o Brasil declarou que uma substância letal teria sido introduzida nos medicamentos que ele consumia regularmente por prescrição de seus cardiologistas.

O ex-presidente trabalhista faleceu em 7 de dezembro de 1976 em sua fazenda em Mercedes, na província de Corrientes, perto do Rio Grande do Sul, seu estado natal.

Seus restos foram autorizados a entrar no Brasil sob a condição, imposta pela ditadura, de que não fosse realizada nenhuma autópsia. Só em 2013, durante o governo democrático de Dilma Rousseff, a autópsia foi finalmente feita.

Foi então que os peritos encontraram “substâncias”  tóxicas no cadáver enterrado na cidade de São Borja, no Rio Grande do Sul.

Mas, até o momento, os estudos realizados em laboratórios estrangeiros não chegaram a resultados conclusivos sobre um envenenamento.

A exumação de Goulart “infelizmente foi muito apressada, e para piorar, envolveu a participação da polícia federal, uma instituição que, como sabemos, não possui um histórico de compromisso democrático. O primeiro ponto a ser considerado é que, se antes da exumação já havia suspeitas de envenenamento, essas suspeitas ainda persistem, por ainda existirem vestígios de substâncias tóxicas em um cadáver que se degradou ao longo de quatro décadas”, pondera Krischke.

Em 2016, três anos após a exumação do ex-presidente, a Procuradoria-Geral da Nação tentou interrogar Kissinger remotamente, mas nunca obteve resposta, muito menos uma boa disposição para colaborar com a justiça. O mesmo aconteceu diante dos pedidos de magistrados de outros países.

Em 2002, Kissinger, o homem forte dos governos republicanos de Richard Nixon (1969-1974) e Gerald Ford (1974-1977), cancelou uma viagem a São Paulo, devido à repulsa de organizações de direitos humanos por seu apoio à ditadura brasileira (1964-1985) e à Operação Condor.

Caçador de repressores

Como em toda investigação, “parte-se de uma leitura política, de indícios e dos documentos disponíveis até que surjam mais elementos de prova”, assinala Krischke, conhecido como o maior “caçador de criminosos” da Operação Condor.

Krischke, assim como a família de Goulart, considera que o ex-presidente de centro-esquerda foi vítima de uma conspiração envolvendo agentes brasileiros, argentinos e uruguaios.”

“Sabemos que o ditador Ernesto Geisel (1974-1979) ficou sabendo que Goulart queria retornar ao Brasil para iniciar a transição, opondo-se a esse retorno. Também sabemos, por documentos desclassificados, que os Estados Unidos, ou seja, Kissinger, estavam cientes dessa situação”, afirma Krischke.

O especialista menciona que em fevereiro de 1976, Kissinger viajou ao Brasil, sendo essa a primeira visita das que fez à América do Sul naquele ano.

Até o momento, sabe-se pouco, além das notícias da imprensa, sobre o que foi tratado reservadamente entre o então secretário de Estado e as autoridades locais, mas é quase certo que se falou sobre Goulart.

Kissinger elaborou em 1969, no início da administração Nixon, a doutrina segundo a qual o Brasil deveria ser o freio à expansão comunista na região.

O funcionário era um anticomunista visceral e também não via com bons olhos os líderes moderados, como era o caso de Goulart no Brasil, ou do democrata-cristão chileno Eduardo Frei Montalva, morto em circunstâncias estranhas em uma clínica de Santiago em 1982 (embora a justiça tenha determinado que não houve envenenamento).

A pista do veneno

Para Jair Krischke, além das decisões da justiça, que geralmente chegam “tarde” quando muitas provas foram apagadas pelo efeito do tempo, a morte do comunista Neruda na clínica Santa Maria em 23 de setembro de 1973, a mesma onde faleceu o democrata-cristão Eduardo Frei Montalva, teria sido causada por uma toxina encontrada em seu cadáver, desenterrado há doze anos.

O Prêmio Nobel de Literatura, como lembra o especialista brasileiro, faleceu pouco antes de embarcar para o México, onde deveria lançar uma campanha de denúncia contra Pinochet.

Krischke, que acaba de concluir um documentário sobre a morte de Goulart, diz que tem planos de viajar ao Chile para avançar em sua pesquisa sobre o “assassinato” de Neruda, com uma substância “possivelmente elaborada no laboratório Butantan da Universidade de São Paulo”.

Kissinger e a ditadura brasileira tiveram um papel fundamental na queda de Salvador Allende e na imediata repressão. Há muitos depoimentos de prisioneiros brasileiros que foram torturados por agentes brasileiros no Estádio Nacional, enquanto o embaixador brasileiro, Antônio Câmara Canto, dava todo o seu apoio ao Pinochet”.

“Este apoio incluiria o veneno que matou Neruda?", perguntou o Página12. “É uma possibilidade consistente que precisamos investigar a fundo”, responde.

Pinochet, afirma Krischke, importou conhecimento brasileiro para montar a DINA (Direção de Inteligência Nacional) e talvez tenha feito o mesmo para desenvolver armas químicas em massa, como as elaboradas pelo químico Eugenio Berríos, que trabalhou junto ao agente da CIA, Michael Townley, que visitou o Brasil naquela época.

“Em 2013, uma funcionária do Instituto de Saúde Pública chileno declarou que esse organismo recebeu toxinas do Instituto Butantan. Ela não especificou que essas toxinas foram usadas no início da ditadura, mas esse é um dado importante que poderia ser cruzado com documentos que surjam, agora que Kissinger faleceu, sobre a atuação do Brasil e dos Estados Unidos no golpe e na morte de Neruda, conclui Krischke.