Preocupada com a alta incidência de Covid-19 nos frigoríficos brasileiros, a auxiliar de produção Elena Maria Debastiani, de 48 anos, resolveu deixar o filho, de 11 anos, na casa da irmã, perto de Nova Araçá, cidade de 4 mil habitantes na serra gaúcha.
Dois meses depois, no dia 29 de maio, a decisão se mostrou acertada. Ela estava entre os 447 funcionários da Agroaraçá Indústria de Alimentos diagnosticados com o novo coronavírus. A empresa, especializada na venda de frangos, fez 1.296 testes, após um surto inicial, com 158 infectados e uma morte.
Na comunidade Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, no oeste do Paraná, os indígenas vinham resistindo à doença, diante de medidas de proteção adotadas por eles mesmos. Em 18 de junho, porém, um rapaz de 32 anos, funcionário da Lar Cooperativa Agroindustrial, em Matelândia, apresentou os sintomas“.
Passados quase vinte dias, o número de casos confirmados saltou para 75. Todos os 45 moradores da aldeia que trabalham no abatedouro da Lar se infectaram, expondo as 210 famílias — mais de 900 pessoas — que vivem no local.
As duas situações mostram como o agronegócio ajudou a espalhar o vírus pelo país, sobretudo em comunidades e municípios pequenos. Por determinação do presidente Jair Bolsonaro, a produção, distribuição, comercialização e entrega de alimentos são, desde 20 de março, consideradas essenciais, não podendo ser interrompidas durante a pandemia.
Os números mostram que o setor não se preparou para a chegada da pandemia no Brasil.
Segundo cálculos da Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac), o setor do agronegócio, incluindo frango, suínos e bovinos, emprega hoje aproximadamente 800 mil pessoas no país. O secretário-geral da entidade, José Modelski Júnior, estima que de 25% a 50% delas tenham se infectado em decorrência da atividade nas fábricas:
“Em alguns lugares as empresas fizeram controle através da busca ativa. Quem apresenta algum sintoma é afastado e ocorre acompanhamento. Aí a contaminação é menor, entre 25% e 30%. Mas há lugares onde foi feita testagem em massa e deu acima de 50% dos trabalhadores, contando os assintomáticos, os que já tiveram e outros com consequências mais graves. Essa é a realidade geral”.
Como exemplos, Modelski cita situações em Lajeado (RS) — na BRF e na Minuano —, em Dourados (MS), no oeste catarinense e em Rio Verde (GO). No município sul-mato-grossense, a 233 quilômetros de Campo Grande, a primeira confirmação foi de uma indígena de 35 anos, funcionária da JBS Foods Seara, como revelou o observatório em maio.
Em 18 de maio, cinco dias depois do diagnóstico, já havia 30 casos de Covid-19 entre os povos Kaiowá e Guarani da reserva, a mais populosa do Brasil. Os indígenas de Dourados enfrentam ainda a falta de acesso a água e saneamento, em uma situação de apartheid.
No caso das indústrias, a Contac propôs a redução em 50% no número de empregados por turno, aumentando a quantidade de turnos, se necessário. Conforme Modelski, contudo, mesmo aquelas que mantêm diálogo com a confederação, que é ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), não atenderam à recomendação:
“Falam que, com isso, haveria redução também na produção. Nossa intenção não é interditar frigorífico, nem causar desabastecimento numa hora dessas. É proteger a saúde dos trabalhadores. Nos frigoríficos o trabalho é ombro a ombro. Essa é a principal causa da contaminação”, salienta o dirigente.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) tem 213 investigações ativas para apurar denúncias nas empresas do setor, em 22 estados. Os dados são de 7 de julho e incluem inquéritos civis, em fase mais avançada, e verificação de cumprimento de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs).
Conforme o levantamento, feito a pedido da reportagem, 87 plantas já firmaram TACs e em outras 11 houve solicitação de fechamento. A maioria delas fica na Região Sul. O MPT também propôs dezesseis ações civis públicas.
Na avaliação do procurador Lincoln Roberto Nóbrega Cordeiro, os números são importantes para mostrar como a interdição dos abatedouros só ocorre em situações gravíssimas. “Essa alegação de que está havendo uma paralisação massiva ou uma demonização do setor não é real”, afirma ele, que é vice-gerente do Projeto Nacional de Frigoríficos do MPT.
A médica infectologista Flávia Trench explica que os abatedouros funcionam como pequenas cidades, com um universo gigantesco de pessoas. “A gente fala de mil, 2 mil, 7 mil funcionários, vindos de diversas partes, às vezes de diversos municípios, e que chegam para trabalhar num ambiente gelado, fechado, um do lado do outro”, afirma ela, que é professora na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), de Foz do Iguaçu (PR).
Outro problema que Flávia conta ter constatado é que muitos empregadores se preocupam mais em não contaminar a carne do que em evitar a proliferação da Covid-19 entre os trabalhadores:
“A maior causa de contaminação é quando o funcionário vai tirar o equipamento de proteção. Se isso já é falho na saúde, onde há treinos periódicos, imagine num ambiente onde as pessoas são menos ligadas”.
O ambiente frio também é, conforme a médica, propício para a disseminação do vírus. “A durabilidade dele numa superfície mais fria e, consequentemente, seu poder infectante, é muito maior do que quando há sol e ventilação”, explica.
Além da divisão maior entre turnos, sugerida pela Contac, a infectologista aconselha os empregadores a aumentarem o controle na entrada das fábricas, com medição de temperatura, e a facilitarem os procedimentos de quem manifestar sintomas.
Quando o plantão telefônico identificar um caso entre um funcionário, por exemplo, “que a indústria já aceite o atestado para isolamento domiciliar”. Ela diz que medidas como essa não vão zerar os casos, mas devem minimizar o problema.
No Rio Grande do Sul, unidade da federação que concentra o maior número de investigações sobre o novo coronavírus em frigoríficos, ao menos 32 plantas, de 23 municípios, apresentaram trabalhadores infectados desde o início da pandemia. Conforme o Ministério Público do Trabalho (MPT), 4.957 empregados já testaram positivo, o que equivale a 25,14% do total de 19.710 infectados no estado em 23 de junho.
Além do gerente de produção Lorimar Oliveira, da Agroaraçá, outros quatro funcionários de abatedouros gaúchos e doze contactantes (parentes ou amigos) morreram em decorrência da Covid-19. O óbito mais recente, registrado também em 23 de junho, é de um homem de 48 anos, que há 23 trabalhava na Seara/JBS de Três Passos.
Os frigoríficos empregam em torno de 65 mil pessoas no Estado. Recentemente, três unidades da JBS foram interditadas liminarmente por ações civis públicas ajuizadas pelo MPT: em Caxias do Sul, em Passo Fundo e em Trindade do Sul.
Pequenas e médias cidades do Paraná também registraram explosão de casos após surtos em frigoríficos. O primeiro óbito em Paranavaí, no noroeste paranaense, em 14 de maio, foi de uma mulher de 40 anos, que ficou internada por oito dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da Santa Casa. Ela era uma das 1.800 funcionárias da GTFoods, indústria de abate de frango.
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