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O glifosato às portas de uma segunda vida na UE

A União Europeia numa Corda Bamba sem rede de proteção

Na sexta-feira 13, os 27 estados membros da União Europeia (UE) decidirão se prolongarão ou não a autorização do glifosato em seu território por mais uma década. Ao que tudo indica, será um dia fatídico para os movimentos sociais e os especialistas que denunciam a enorme nocividade dessa substância.

Daniel Gatti

13 | 10 | 2023


Foto: Gerardo Iglesias

No ano passado, na região, multiplicaram-se os apelos para que o glifosato fosse proibido. Não apenas se acumularam evidências científicas sobre as consequências negativas de seu uso para os seres vivos e o meio ambiente, mas também houve decisões judiciais nesse sentido, a maioria nos Estados Unidos.

É hora de a Europa deixar de virar o rosto e agir de uma vez por todas para proibir o uso de uma molécula química que é a base do Roundup, o herbicida mais utilizado em todo o mundo. Por décadas, essa substância está destroçando a saúde de nossos agricultores e destruindo tudo o que toca”, afirmaram, naquele então, diversas organizações ambientais da região.

A UE deveria ter tomado uma decisão sobre o assunto já no final do ano passado, mas preferiu prorrogar por mais doze meses o uso dessa nociva substância, para até dezembro agora, enquanto promovia “novos estudos definitivos”.

A última vez que o Conselho Europeu composto por representantes de todos os países membros se pronunciou sobre o cerne da questão foi em 2017.

Naquela ocasião, a autorização do glifosato foi concedida por uma margem de votos muito estreita. Era necessário que a resolução —qualquer que fosse ela— contasse com o apoio de países que, somados, representassem pelo menos 65% da população da União Europeia: os votos a favor da prorrogação atingiram 65,2%. Para a votação atual, o requisito permanece o mesmo.

Nada a dizer

A Comissão Europeia, órgão executivo da União, já expressou sua opinião: não encontrou “nada repreensível” na molécula e, portanto, recomendará que continue sendo utilizada, “com as precauções necessárias”.

Para chegar a essa conclusão perigosa, a Comissão se baseou nas avaliações da EFSA, a agência de segurança alimentar, que em julho passado deu sinal verde para o glifosato.

Mas há um probleminha nas avaliações da EFSA: suas únicas fontes são os estudos realizados pelas próprias indústrias do setor, cujo interesse direto é garantir que a substância e seus produtos derivados continuem recebendo certificados de boa conduta.

Com sotaque francês

Já se sabe que na sexta-feira 13, a Alemanha, o país com o maior número de habitantes da Europa, apoiará a proibição, assim como a Áustria, a Croácia e Luxemburgo.

Mas não será suficiente: a França, país europeu onde o produto mais usado em pulverização é o Roundup, sendo aliás o segundo mais populoso da região, seguirá a recomendação da Comissão Europeia. Contrariamente, em 2017, a França havia votado pela sua proibição.

“Confiamos na ciência, nos estudos que afirmam que o glifosato não apresenta nenhum problema cancerígeno“, afirmou em 13 de setembro o ministro francês da Agricultura, Marc Fesneau, ao jornal Ouest France.

A menos que haja uma mudança de tendência de última hora, o glifosato terá sua sobrevivência garantida na região por pelo menos mais uma década, às custas das vidas das milhares de pessoas que lá vivem.

Do outro lado da balança, é preciso destacar que a Alemanha proibirá o glifosato em seu território, independentemente da resolução final do Conselho.

Presunção de culpa

Ao contrário do que afirmam Fesneau e a EFSA, diversos toxicologistas, biólogos, oncologistas, endocrinologistas independentes, argumentaram que a ciência está inclinada mais para condenar do que para absolver o glifosato.

A literatura científica mais recente, gerada por especialistas não afiliados aos laboratórios que trabalham para as empresas do setor, como afirmou a toxicologista francesa Laurence Huc, estabelece não apenas que o glifosato é muito provavelmente cancerígeno em humanos, como concluiu uma agência da ONU em 2015, mas também é ele quem está na origem de múltiplas e graves patologias.

Se excluirmos os autores de publicações que têm conflitos de interesse por trabalhar para as transnacionais do setor, 75 por cento dos estudos sobre glifosato e possíveis alterações genéticas geradoras de câncer estabelecem como causante a genotoxicidade do componente ativo do Roundup.

Essa conclusão é do pesquisador norte-americano Charles Benbrook, lembrou Huc ao portal Médiapart (20-IX-23), por ter analisado há alguns anos “toda a literatura disponível sobre glifosato e genotoxicidade”.
O mesmo foi determinado na França pelo INSERM (Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica) em estudos sobre patologias relacionadas ao uso de pesticidas realizados em 2021.

Nos Estados Unidos, as transnacionais Monsanto (fabricante do Roundup) e a Bayer, que adquiriu a anterior em 2016, foram condenadas a pagar bilhões de dólares em indenizações a agricultores que contraíram doenças como o Linfoma Não Hodgkin (LNH), uma forma de câncer, devido à exposição prolongada ao herbicida.

E o problema não se limita ‘apenas’ ao câncer: “há convergência entre os cientistas de que o glifosato é um disruptor endócrino, ou seja, tem efeitos sobre a fertilidade e a formação do feto”, que “é prejudicial para a microbiota intestinal” (o que pode gerar diversas doenças metabólicas), e que também afeta “gravemente os ecossistemas”, seja o solo, o ar ou a água, disse a toxicologista.

As formulações comerciais, como o Roundup, são ainda piores do que o glifosato sozinho, pois incorporam outras substâncias nocivas, acrescentou.

Intoxicação

A EFSA, assim como a ECHA (a agência europeia que examina produtos químicos), descarta completamente todos esses estudos e se baseia apenas nos estudos produzidos pelas indústrias, que, por sua vez, embora estejam obrigados a comunicar a todas as agências de controle os resultados disponíveis sobre um determinado assunto, geralmente “esquecem”, ocultam ou minimizam aqueles que são desfavoráveis a eles.

Desde que, em 2014, o Centro Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (CIRC), vinculado à Organização Mundial da Saúde, anunciou que produziria uma monografia sobre o glifosato (a mesma que, um ano depois, classificou a substância como “provavelmente cancerígena em humanos”), os industriais lançaram uma campanha maciça de desinformação, destacou Huc.

Cientistas que trabalhavam para laboratórios das próprias empresas (Monsanto, Bayer, Syngenta e outras) “emprestaram” seus nomes para análises manipuladas realizadas pelos industriais com o objetivo de semear dúvidas sobre a nocividade do glifosato. Às vezes, divulgavam algum estudo desfavorável à substância, mas no meio de uma montanha de outros que a apresentavam como inofensiva.

A EFSA, a ECHA e outros organismos supostamente independentes se agarram a essas pesquisas de base científica muito limitada, quando existem fundamentos para, no mínimo, acionar o princípio da precaução, afirma outro cientista francês, Xavier Coumoul, professor de bioquímica e toxicologia na Universidade Paris-Cité.

O que está em jogo são bilhões de bilhões de dólares.

Quando, em 1977, a Monsanto percebeu que o glifosato, uma molécula descoberta em 1950, inicialmente usada para desentupir tubulações, poderia ser empregado como herbicida e, acima de tudo, a um custo muito baixo, foi como ganhar na loteria.

Alguns anos depois, o Roundup começaria a inundar os cinco continentes. Hoje, cerca de 800 milhões de toneladas desse produto são comercializadas a cada ano. E assim estamos, numa corda bamba sem rede de proteção.