Com Damián Verseñassi
Não podem existir corpos saudáveis em territórios doentes, diz o Dr. Damián Verseñassi, diretor do Instituto Nacional de Saúde Socioambiental da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Rosário (UNR), na Argentina. Por quase uma década, este especialista em Medicina Legal coordenou os chamados acampamentos de saúde, um trabalho de extensão que os alunos tinham que fazer no final do curso.
Daniel Gatti
24 | 08 | 2022
Imagem: Allan McDonald- Rel UITA
A iniciativa foi realizada em cidades rurais com menos de 10.000 habitantes, a grande maioria localizada em províncias onde a soja impera (Buenos Aires, Córdoba, Santa Fé, Entre Ríos) e onde seus habitantes são rotineiramente pulverizados com pesticidas, sem exagero.
Mais de 40 foram os acampamentos realizados entre 2010 e 2019 por estudantes que percorreram as casas dos moradores, coletando dados de saúde a fim de tratar melhor as pessoas que adoeciam com câncer ou com patologias dermatológicas, respiratórias, endócrinas, neurológicas em um grau muito maior do que no resto do país.
"Não morremos mais de velhice", era o que os vizinhos costumavam dizer às equipes universitárias, informou o Dr. Verseñassi.
A experiência terminou abruptamente em 2019, quando a Faculdade de Ciências Médicas da UNR acabou cedendo à pressão de políticos locais e nacionais, de grandes empresários agrícolas e dos laboratórios.
Eles não foram sensíveis apenas à pressão. Também tinham seus próprios interesses. Diretores do Laboratório de Toxicologia da Faculdade trabalharam para a câmara que reúne empresas comercializadoras de agrotóxicos.
Em 2019, o Dr. Verseñassi foi privado da possibilidade de dar aulas e quatro integrantes de sua equipe foram demitidos.
A Rel entrevistou este importante médico, argentino, e que também é membro da Associação Latino-Americana de Medicina Social e da União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade e a Natureza da América Latina, quando passou pelo Uruguai no final de julho.
O Dr. Verseñassi veio a Montevidéu convidado pela Sociedade Uruguaia de Medicina Familiar e Comunitária (Sumefac) para oferecer palestras e oficinas, principalmente sobre a experiência dos acampamentos de saúde, e para iniciar um curso na Faculdade de Medicina da Universidade da República ( Udelar).
Atualmente, o Grupo de Saúde e Meio Ambiente da Sumefac trabalha com os produtores de arroz do departamento de Rocha, afetados por doenças semelhantes às que sofrem os habitantes das cidades fumigadas do outro lado do rio Uruguai.
“Fazemos parte do mesmo modelo produtivo, um modelo que envenena corpos, alimentos e territórios e só favorece as transnacionais”, disse o Dr. Verseñassi.
E destacou a "grande notícia" de que a universidade pública uruguaia está coorganizando um curso de saúde socioambiental, e que o Sindicato Médico ofereceu sua sede em Montevidéu para um encontro do qual participam profissionais de saúde, mas também "produtores, apicultores, vizinhos e vizinhas, vítimas do agronegócio”.
“Era evidente a necessidade de que esses diálogos fossem assumidos pela comunidade médica", algo não tão comum considerando que a ciência já por muitas décadas vem ganhando um perfil “mercenário”, disse ele para A Rel.
“Nesses intercâmbios, era contundente o acordo sobre a importância de se ter alimentos de verdade (saudáveis, seguros, soberanos), para recuperar a saúde (de cada um e das comunidades que constituímos), e de haver políticas que acompanhem quem produz sem venenos, sem contaminar, sem prejudicar”.
Para o Dr. Verseñassi, o conceito usual de "trabalhadores e trabalhadoras da saúde" é muito restrito.
“Muito mais pessoas trabalham para a saúde do que só os profissionais do setor. Na realidade, o primeiro trabalhador da saúde não está nos hospitais ou nas urgências, mas sim no local onde os alimentos são produzidos, são aqueles que colocam a mão na terra e garantem a nós o ciclo vital”, afirma.
“Devemos formar médicos com essa concepção, que leva em conta as dimensões social e ambiental. Dizer-lhes, por exemplo, que a vida precisa de diversidade, tempo, território e que um corpo saudável em um território doente é uma contradição em si, um oximoro. Mas nada disso é feito”.
O Dr. Verseñassi ressalta que a cultura da saúde no campo reproduz os mecanismos do modelo. “Às vezes os colegas que estão no território não veem os problemas, outras vezes são participantes que reforçam o modelo, ou porque o médico é também o dono do campo ou porque trabalha, de uma forma ou de outra, para o dono do campo."
"Existe uma geopolítica da doença", diz o Dr. Verseñassi.
Quando, no final dos anos 60, nos países do norte rico, perceberam que o modelo de produção que seguiam desde o final da Segunda Guerra Mundial estava deixando todos doentes e que havia indústrias e atividades particularmente responsáveis por essa situação, eles decidiram mover o modelo de produção para o sul global.
Eles precisavam garantir um fácil acesso a terras férteis e água abundante para instalar essas indústrias “fora”. Para isso, iriam fornecer aos países do sul global a infraestrutura necessária em saneamento, transporte, comunicações, energia para poderem operar com tranquilidade nessas terras.
Fizeram planos metódicos e colocaram as instituições multilaterais de crédito (FMI, Banco Mundial, BID) para trabalhar nessa direção.
A África estava arruinada, mas a América Latina oferecia o necessário.
No entanto, naquelas décadas de sessenta e setenta, os territórios latino-americanos apresentavam o problema de ter movimentos sociais fortes, universidades que formavam pessoas dotadas de pensamento crítico e, em alguns países, governos populares ou nacionalistas que fariam resistência.
Acabar com todos esses focos era um imperativo, e assim o fizeram. Outro imperativo: endividar os países “para que não tivessem nenhuma capacidade de autonomia”. E assim fizeram.
E lançaram uma revolução produtiva nos países latino-americanos, uma “nova configuração socioeconômica e política cuidadosamente planejada”, liderada por indústrias extrativistas que se aproveitaram de tudo: da terra, da água, dos próprios corpos.
A implantação desse modelo de produção predatório, observa o Dr. Verseñassi, foi feita com a cumplicidade das elites locais, e anos depois contou de fato com a anuência de setores e governos progressistas, que não questionaram as raízes do modelo. Às vezes tentavam mitigar seus efeitos, mas não pensavam em muda-lo.
"Vemos os resultados no estado de saúde de nossas populações, no meio ambiente e nos produtos que consumimos e exportamos, que não podem mais ser considerados alimentos."
“Dos países do Rio da Prata se dizia, no início do século XX, que éramos os celeiros do mundo porque produzíamos efetivamente vacas e grãos. Mas agora não são mais aquelas vacas e aqueles grãos, mas elementos que não possuem as propriedades nutricionais ou mesmo as características físico-químicas dos alimentos”.
“Nossos filhos estão sendo imunologicamente destruídos por não poderem incorporar comida de verdade em sua dieta, porque até o leite materno está contaminado com produtos químicos vindo destas terras.”
Nossas terras foram contaminadas pela "transgenização", pela “monsantização” do mundo, sendo a América Latina um de seus picos mais altos.
Em 2016, o Dr. Verseñassi foi o único cientista latino-americano a testemunhar no tribunal internacional que julgou a transnacional Monsanto em Haia, empresa que patenteou o Roundup, um dos agrotóxicos mais vendidos no mundo, à base de glifosato.
Surgido da sociedade civil, o tribunal condenou a empresa, agora de propriedade da Bayer, por ecocídio e por violações dos direitos humanos das pessoas e comunidades contaminadas pelo agrotóxico.
O Dr. Verseñassi está feliz, pois ultimamente, especialmente nos Estados Unidos, os tribunais estão condenando os perpetradores de estragos causados pelos venenos fabricados pela Monsanto, Bayer e outras transnacionais do setor e indenizando as vítimas.
“São agricultores que foram contaminados antes dos nossos. Pelo menos hoje eles estão sendo indenizados”, diz.
Mas esses julgamentos vêm com um problema: a Monsanto não foi condenada por envenenamento, mas sim por não avisar que o Roundup e similares eram venenos. É possível deduzir desses tipos de sentenças que, se tivessem sido avisados, nada lhes teria acontecido.
“Por outro lado, é bom que esses juízes nem estejam mais discutindo se estão ou não lidando com produtos ‘fitossanitários’. Já é consenso que são tóxicos. Nisso eles nos estão dando a razão, e aqueles tempos em que poderiam nos acusar de ser ecoterroristas ou mentirosos ficaram definitivamente para trás”, diz o Dr. Verseñassi.
“Diziam para nós: o mundo está com fome, temos que alimentar as pessoas e a única maneira de fazer isso é com este pacote tecnológico. Igualzinho como antes, quando nos disseram que a 'revolução verde' era a solução para a fome. Comprovou-se que ambas as maneiras eram falsas: a fome não diminuiu −pelo contrário− e terminamos adoecendo”.
Mas a questão agora é banir esse tipo de produto definitivamente e imediatamente.
Na Europa estão proibindo sua venda lá, mas não sua fabricação e exportação. “Eles ficam ricos nos vendendo venenos e repassam os custos para nós. O velho truque da geopolítica da doença”.