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Com Fernanda Kaingáng

A revisão da NR36 e sua ligação direta com as comunidades indígenas

Em 2020, entre 10 e 20 mil indígenas trabalharam nos frigoríficos do Brasil. A NR36, que regulamenta a saúde e segurança neste setor, não pode ser modificada sem antes consultar as comunidades originárias, pois serão as mais afetadas por essas mudanças. No entanto, a advogada e ativista indígena Fernanda Kaingáng disse à Rel que a revisão dessa norma foi feita de forma apressada, violando a obrigação de consultar os povos originários, como diz a Convenção 169 da OIT.

Amalia Antúnez


Foto: Gerardo Iglesias

-Como a flexibilização da norma que regulamenta as condições de saúde e segurança em frigoríficos afetaria as comunidades indígenas?
-A mão-de-obra indígena que busca emprego em grandes indústrias, incluindo frigoríficos, será muito afetada se a NR36 for enfraquecida.

Isso se falarmos apenas de trabalhadores e de trabalhadoras, mas também devemos levar em conta que quem trabalha nos frigoríficos tem família para sustentar, geralmente bem numerosa.

A população indígena já é economicamente vulnerável. Dados do governo federal mostram que essas comunidades estão inscritas em massa em programas de Auxílio Alimentação como o Bolsa Família.

Portanto, a revisão da norma, eliminando as pausas para recuperação psicofisiológica, sem dúvida gerará um grande retrocesso que afetaria muitos trabalhadores economicamente vulneráveis, como é o caso dos indígenas.

-O acesso à terra e a ocupação de terras indígenas para o agronegócio afetam as comunidades indígenas, levando-as a serem mão-de-obra barata para frigoríficos?
-Afetam diretamente. A maioria dos trabalhadores indígenas é submetida a viagens de três horas para chegar ao local de trabalho, com mais outras três horas para voltarem às suas casas, em condições precárias de transporte, por salários muito baixos, justamente por terem poucas terras.

Sendo que essa pouca terra que eles têm está sendo explorada ilegalmente, de forma desordenada, por meio da ocupação dos territórios indígenas em nome de interesses financeiros para o plantio de monoculturas, geralmente transgênicas, o que não pode ser feito em reservas indígenas.

Opressão dentro e fora

São monoculturas que poluem o meio ambiente, que comprometem as variedades crioulas e o desenvolvimento da agricultura tradicional de subsistência, prejudicando a própria organização social dos povos indígenas porque as lideranças indígenas terminam pressionadas e acabam elas mesmas oprimindo as suas comunidades.

Então, muitos indígenas se veem na necessidade de procurar fora de suas aldeias uma forma de subsistência. Por sua proximidade com a indústria frigorífica, principalmente nas regiões Centro-Oeste e Sul, a mão-de-obra indígena é mais rapidamente absorvida, sendo a mais explorada e vulnerada dentro dos frigoríficos.

-Essa situação que você descreve piorou nos últimos anos, principalmente com o governo de Jair Bolsonaro…
-Si bien esto no es nuevo, con el gobierno actual se agravó bastante. En gobiernos anteriores se crearon mecanismos de distribución de la renta, proyectos de sustentabilidad, demarcación de tierras, etcétera.

No governo Bolsonaro tudo isso se perdeu e hoje a violação dos direitos territoriais se intensificou.

Quando as terras indígenas não são demarcadas e ainda por cima são favorecidos os interesses da mineração, da exploração madeireira e do agronegócio, como foi feito neste governo, a situação dos povos indígenas é de total vulnerabilidade.

A pandemia piorou tudo, porque as comunidades ficaram isoladas, já que os contágios por covid entre os trabalhadores indígenas nos frigoríficos eram altíssimos e, por sua vez, mais mortais devido às condições genéticas das populações originárias.

Convenções internacionais desrespeitadas

-Como a revisão da NR36 atenta contra a Convenção 169 da OIT?
-Esta Convenção é o instrumento internacional mais robusto em matéria de defesa dos direitos dos povos indígenas, especialmente na área do trabalho.

A Convenção 169 estabelece o direito de consulta, que deve ser exercido antes da criação de mecanismos jurídicos ou administrativos que possam afetar as comunidades.

As consultas, por sua vez, devem ser realizadas de boa-fé, levando em consideração a diversidade linguística, além disso os governos devem acatar o resultado das consultas feitas às comunidades indígenas.

A revisão da NR36, feita a toque de caixa, no período de recesso de fim de ano, viola o direito dos povos indígenas de serem informados prévia e claramente sobre como essa medida pode afetá-los.

A revisão dessa norma seria, em suma, um retrocesso para os povos indígenas.

Consequentemente, o governo brasileiro deve ser pressionado a respeitar os direitos de suas populações originárias, já consagrados internacionalmente.