Com Jair Krischke
Para o ativista dos direitos humanos, a ausência de políticas públicas para recordar o período ditatorial contribui para o crescimento de movimentos revisionistas e de ultradireita dentro da política brasileira Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), defende a importância de preservar a memória histórica sobre a ditadura militar brasileira, considerando-a a principal forma de prevenir o retorno de regimes autoritários.
Jornal do Comercio
3 | 4 | 2025

Com Jair Krischke | Foto: Gerardo Iglesias
Ele compartilha, em entrevista ao Jornal do Comércio, suas lembranças do período de repressão e os desafios enfrentados no resgate de perseguidos políticos durante e após o regime militar.
Em 31 de março de 2025, o Brasil lembra os 61 anos do golpe militar de 1964, um marco no país que resultou em 21 anos de repressão e violações dos direitos humanos. Para Jair Krischke, a memória é a vacina contra os abusos cometidos por regimes autoritários.
Em sua visão, a ausência de políticas públicas para recordar o período ditatorial contribui para o crescimento de movimentos revisionistas dentro da política brasileira.
Ele critica a falta de uma reflexão profunda sobre os crimes cometidos pela ditadura, pois o que se vê são práticas de “esquecimento”, que favorecem a impunidade.
Jair Krischke sobre o golpe de 1964 e o contexto histórico
Krischke destaca que, ao contrário do que muitos afirmam, a presidência da República não estava vaga quando o golpe de 1964 foi deflagrado. Ele possui documentos que comprovam que João Goulart, o presidente deposto, ainda estava no Brasil, em São Borja, quando a narrativa oficial dizia que ele havia fugido para o Uruguai.
Esses registros, que fazem parte dos arquivos do MJDH, desafiam a versão histórica amplamente aceita e revelam como a desinformação foi usada para justificar a ação dos militares.
Sobre o golpe de 1961, Krischke relembra a ação de Leonel Brizola, que, com a Campanha da Legalidade, foi crucial para a resistência ao golpe que tentava impedir a posse de João Goulart. Brizola, com o apoio do Terceiro Exército, se opôs ao movimento golpista no Sul do Brasil, e, em uma manobra política, conseguiu reunir apoio para garantir que Goulart voltasse ao poder.
No entanto, Krischke ressalta que a negociação do presidente com os militares para a mudança do sistema presidencialista para parlamentarista gerou um rompimento entre ele e Brizola, que considerou a decisão uma "tragédia política".
Krischke observa que o golpe de 1964 foi bem-sucedido devido ao apoio das forças militares dos Estados Unidos e à sua atuação política dentro do Brasil. Segundo ele, a presença do embaixador americano Lincoln Gordon e de oficiais militares como Vernon Walters foi fundamental para o êxito do movimento golpista.
O financiamento de campanhas políticas, incluindo a eleição de deputados e senadores, ajudou a garantir a vitória do golpe. Krischke também destaca a colaboração da Igreja Católica e do empresariado, que contribuíram para a derrubada do governo de Goulart.
Krischke lembra que, em 1964, a maioria das pessoas, inclusive ele próprio, foi pega de surpresa pelo golpe. Na época, ele era um jovem que, como muitos, não esperava que o golpe militar se concretizasse.
Mesmo com a crescente tensão política, Krischke não imaginava que o golpe fosse durar tanto tempo. Ele lembra de sair de casa no dia 1º de abril e ver a cidade de Porto Alegre tomada por uma sensação de incerteza e vazio.
A resistência, naquele momento, era quase inexistente, e o golpe caiu como uma grande surpresa para a maioria da população.
Ao longo da ditadura, Krischke e o MJDH foram fundamentais no resgate de perseguidos políticos, principalmente após o Ato Institucional Número 5 (AI-5), em 1968, que intensificou as perseguições.
A partir desse momento, Krischke passou a atuar na criação de rotas de fuga para tirar dissidentes do Brasil, especialmente aqueles que se encontravam no Centro e Nordeste do país, e levá-los para países vizinhos como o Uruguai.
Posteriormente, com os golpes que ocorreram no Uruguai, Chile e Argentina, o trabalho de resgatar e transferir refugiados políticos se estendeu para outras partes da América Latina.
Em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Krischke e sua equipe conseguiram garantir o exílio de cerca de duas mil pessoas em países como Suécia e outros da Europa.
Krischke enfatiza que a principal falta do Brasil no pós-ditadura é a ausência de políticas públicas voltadas à preservação da memória sobre o regime militar. Para ele, a memória é a principal proteção contra o retorno de regimes autoritários. No entanto, o que se observa no Brasil são políticas de "esquecimento", que buscam deslegitimar os testemunhos e a memória das vítimas da ditadura.
Krischke lamenta que, enquanto outros países latino-americanos têm trabalhado para garantir o reconhecimento e a reparação para as vítimas da repressão, o Brasil segue sem uma reflexão séria sobre seu passado.
Transição ou transação?
Krischke discorda da versão tradicional sobre a redemocratização brasileira, que é associada a 1985, com a eleição de Tancredo Neves. Para ele, o que ocorreu naquele momento foi uma transação e não uma transição verdadeira para a democracia.
A Constituição de 1967 ainda estava em vigor e o Colégio Eleitoral, que elegeu Tancredo, foi o mesmo que operava sob o regime militar.
A verdadeira redemocratização, para Krischke, só aconteceu com a Constituição de 1988, que foi fruto de um processo democrático e amplamente discutido pela sociedade.
O surgimento de movimentos de ultradireita no Brasil, como o bolsonarismo, também é analisado por Krischke, que vê com preocupação o crescimento desses movimentos.
Ele observa que, até pouco tempo, a direita no Brasil se escondia, mas com a ascensão de figuras como Jair Bolsonaro, esse movimento ganhou força e se tornou um fenômeno político relevante, coma adesão de jovens. Oapoio ao regime militar e a falta de diálogo são características desses novos movimentos, que têm uma visão autoritária e revanchista sobre o passado recente do Brasil.
Jair Krischke nasceu em Porto Alegre, no dia 15 de outubro de 1938. Ativista dos direitos humanos, teve uma atuação destacada em diversos países latino-americanos, como Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai.
Fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), em 1979, recebeu diversos prêmios por sua contribuição à luta pelos direitos humanos, como o título de Cidadão Emérito de Porto Alegre (1985), a Medalha Ordem do Mérito Farroupilha (2004) e a Comenda de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara (2011).