O criptogate de Javier Milei
Enquanto empresas fecham por centenas, trabalhadores são demitidos por milhares e a renda dos setores populares continua despencando, o presidente Javier Milei incentivou o investimento em uma criptomoeda recém-criada antes de retirar seu apoio e tentar se livrar da responsabilidade. Em poucas horas, dezenas de milhares de pessoas que o seguiram perderam o que haviam investido e um punhado ganhou uma fortuna. A tempestade perfeita do pesadelo “libertário”.
Daniel Gatti
24 | 2 | 2025

Ilustração: Allan McDonald - Rel UITA
Como é de seu costume, tudo foi feito por meio do X, o antigo Twitter, propriedade de seu amigo Elon Musk, colaborador próximo do presidente dos Estados Unidos Donald Trump.
Na noite de sexta-feira, Milei usou uma mensagem de menos de 280 caracteres no X para incentivar o investimento em uma criptomoeda, $Libra, criada apenas alguns minutos antes.
"Este projeto privado se dedicará a incentivar o crescimento da economia argentina, financiando pequenas empresas e empreendimentos argentinos", escreveu.
Classificada na escala das criptomoedas entre as memecoins, moedas virtuais sem respaldo em qualquer outro ativo, para crescer a $Libra precisava da promoção de uma figura popular ou relevante.
Essa figura foi o presidente argentino.
Assim que Milei a apoiou, $Libra, que não valia nem uma milésima de dólar no momento do lançamento, subiu rapidamente, superando os cinco dólares.
Algumas horas depois, ele retirou seu tweet de apoio e disse não ter certeza da solidez do projeto.
O valor da $Libra despencou imediatamente, fazendo com que pelo menos 75% dos investidores (em sua maioria argentinos, mas também muitos estrangeiros) perdessem tudo.
Ainda não se sabe quantos foram os "perdedores" dessa jogada de cassino: primeiro se falou em 40.000, depois 44.000, mais tarde 75.000. Somados, esses números teriam sido lesados em um total próximo a 110 milhões de dólares. Ou mais.
Na outra ponta, claro, houve quem se beneficiou com a manobra fraudulenta e embolsou uma boa quantia de dinheiro.
De acordo com investigações da imprensa, estariam nessa lista velhos colaboradores ou empregadores de Milei, membros do governo argentino e até personagens do universo conspiracionista da ultradireita internacional, especialmente latino-americana e norte-americana.
Estariam, talvez, aqueles que arquitetaram tecnicamente a manobra, entre eles o criador da moeda, o jovem e enigmático empresário norte-americano Hayden Mark Davis, proprietário de uma sociedade registrada no paraíso fiscal do Panamá.
Admirador do presidente argentino e seu liberalismo extremo, Davis se reuniu com os Milei, Javier e sua irmã Karina, eminência cinza do governo, pelo menos duas vezes nos últimos seis meses, em julho e janeiro. Provavelmente para preparar a jogada.
Se o “experimento” falhou, se “tudo deu errado”, disse agora o decepcionado Davis, foi porque Javier Milei se retirou. O norte-americano disse que está esperando a ordem do presidente para que os 110 milhões de dólares "investidos" encontrem um destino.
O presidente, por sua vez, tentou se desvincular de toda a situação.
Uma de suas linhas de defesa é absurda: quando promoveu a cripto – escreveu no X e reiterou em uma pseudo-entrevista supercomplacente na noite de segunda-feira, 17 – agiu não como presidente, mas como um indivíduo “comum e corrente”.
“Não sou presidente o tempo todo”, afirmou, tentando apagar sua responsabilidade no escândalo.
Quando era deputado, o líder de La Libertad Avanza já tinha usado essa estratégia de defesa em uma situação semelhante, quando promoveu ("não como deputado, mas como pessoa") – após receber cerca de 10.000 dólares pela propaganda, segundo ele mesmo reconheceu – outra criptomoeda que resultou em fraude, a CoinX.
Nem anteriormente, nem agora pediu desculpas ou demonstrou arrependimento.
Na entrevista de segunda-feira à noite, Milei também afirmou que se limitou a “divulgar” a iniciativa da $Libra, e não a “promovê-la”, e que o fez apenas depois que a existência da moeda se tornou conhecida.
Relatórios detalhados e documentados da imprensa, no entanto, destacam que a $Libra não existia antes de Milei promovê-la e que todo o projeto (não por acaso chamado Viva la Libertad.project, imitação do famoso e criticado slogan do presidente) contou com seu aval e conhecimento prévio.
O próprio Davis confirmou isso. Tudo foi feito com seu apoio e graças ao seu círculo mais próximo, disse ele.
Agora, o presidente está sendo alvo de denúncias criminais, tanto de argentinos quanto de estrangeiros. Apenas em seu país, na terça-feira, 18, já haviam ultrapassado largamente as 100. Ele é acusado de fraude, associação criminosa e descumprimento dos deveres de funcionário público.
Setores da oposição estão, paralelamente, considerando a possibilidade de submetê-lo a um julgamento político.
Até mesmo alguns de seus primeiros seguidores, os chamados criptobros, um grupo de jovens fanáticos por cassinos virtuais, estão o observando de perto, pois se encontram entre os lesados e/ou porque consideram que a atitude de Milei lançou sombras sobre todo o mundo das moedas “imateriais”.
Será que Milei agiu apenas como um fanático, como um iludido que acredita cegamente nos benefícios que o cassino virtual pode trazer para a economia de um país, da mesma forma que acredita na justiça divina do mercado, fala com seus cães mortos ou se considera um escolhido das forças celestiais, ou ele é um trapaceiro?
Ele é um idiota (um tonto) ou um ladrão (um criminoso)?
Essas perguntas foram ditas por muitos nesses últimos dias. "Ele é um iludido trapaceiro", respondeu à primeira o jornalista Ari Lijalad, apresentador de um programa de rádio muito seguido. Ele é mais um ladrão do que um idiota, sugeriu como resposta à segunda outro jornalista (e economista), Alejandro Bercovich.
Bercovich deu outra pista: idiota ou ladrão, Milei agiu como sempre: fora da realidade dos argentinos e com uma lógica em que sempre são poucos os que ganham e muitos os que perdem.