Série de violações provoca recorrência de perdas gestacionais a trabalhadoras do setor da carne
Erick Gimenes
2 | 10 | 2025

Imagem: O Joio e o Trigo
Ivete içava com as mãos uma barrigada de boi de mais de 20 quilos quando foi tomada por fortes dores no ventre. De cara, suspeitou que pudesse ser algum problema relacionado à gravidez, descoberta havia 15 dias por meio de um teste rápido de farmácia.
À época, ela trabalhava na FriGol, o quinto maior frigorífico do país, em São Félix do Xingu (PA). Naquele momento, perto das 9h de 25 de junho de 2024, realizava atividades na “triparia”, setor que funciona sob altas temperaturas e ruídos contínuos.
É nele que os trabalhadores preparam as vísceras do animal para a transformação em farinhas, posteriormente usadas na produção de ração e cosméticos, por exemplo. Quando sentiu um líquido escorrer do corpo, correu para um banheiro da empresa, em condições “piores que de rodoviária”, segundo ela.
Abrigou-se em uma das baias, toda alagada e tomada por papéis higiênicos no chão, onde se pôs de cócoras, num esforço para não encostar na privada, entupida havia dez dias. Retorcida pelas dores, olhou para baixo e viu o sangue descer pelas pernas. Bateu uma foto improvisada com o celular e se apressou em buscar ajuda.
Ela diz que mostrou a foto ao líder do setor e pediu liberação para ir a um hospital, mas foi comunicada de que “não tinha como”. Precisaria cumprir a jornada do dia até as 13h –havia iniciado às 5h– ou levaria uma suspensão, ou um “gancho”, no jargão da fábrica. Resignada, voltou para o posto de trabalho e retomou o trabalho repetitivo de puxar barrigadas de um tanque, cortá-las e despejá-las em uma mesa.
A trabalhadora afirma que voltou a buscar socorro às 12h30, desta vez no ambulatório da empresa. Ela apresentou novamente a foto como prova de que estava sangrando e de que precisava urgentemente de ajuda médica. A mulher conta que a auxiliar de enfermagem olhou para a tela e friamente comunicou que ela estava sofrendo um aborto espontâneo.
Conforme o relato, a primeira medida da responsável pela enfermaria foi perguntar se a moça estava de moto. Ao ouvir que sim, sugeriu que buscasse ajuda sozinha em algum pronto-socorro, porque “aqui, a gente não dá jeito”.
Oficialmente, a FriGol nega: diz que ofereceu um motorista para levá-la ao hospital, mas que a trabalhadora não esperou e “se ausentou sem conhecimento da empresa”. Sem assistência, Ivete afirma que correu atrás do marido, também empregado do frigorífico, em outro setor. “Ninguém me socorreu. Tive que ir atrás do meu marido, subindo escada, descendo escada, com sangramento e dores”. O casal deixou as instalações da empresa em uma moto e seguiu até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde a mulher foi examinada e encaminhada imediatamente para uma maternidade.
Depois de alguns exames, a perda gestacional foi constatada. “É uma situação muito triste. Eu passei tanta humilhação, sentindo dores. Eu achei que ia morrer. Quando eu lembro que eu perdi meu bebê naquele banheiro podre, sem nenhum socorro, eu sofro muito, até hoje. Sei que não vou ter meu filho de volta, mas quero justiça, para não acontecer o mesmo com outra mãe”, conta Ivete, em entrevista ao Joio.
Dois dias após o aborto, Ivete voltou ao trabalho na triparia. O breve período de afastamento foi recomendado pela médica da maternidade que, ainda que tenha relatado a ocorrência de um “aborto completo” no prontuário, emitiu um atestado com a Classificação Internacional de Doenças (CID) N93, referente a “sangramentos anormais do útero e da vagina”.
Como ainda estava sangrando, a trabalhadora buscou outros médicos por conta própria e obteve mais dois atestados, de dez e cinco dias de afastamento, respectivamente, ambos sem a classificação correta referente a abortos.
Retornou ao corte de barrigadas normalmente em uma segunda-feira, 15 de julho. No dia que sofreu o aborto, Ivete realizava atividades na “triparia”, setor que funciona sob altas temperaturas.
Conforme o artigo 395 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mulheres que tenham sofrido “abortos não criminosos” têm direito a repouso remunerado de duas semanas (14 dias), procedimento que não foi adotado neste caso. À Justiça, a FriGol afirmou que não deu início ao “Programa da Gestação” da trabalhadora porque ela não apresentou documentos que comprovassem a gravidez.
O caso foi levado à Justiça do Trabalho. No processo, é relatado que, antes do aborto, Ivete fez vários pedidos de liberação para uma consulta pré-natal. Os pedidos teriam sido negados pelos chefes, que alegavam que não havia equipe para substituí-la.
A trabalhadora afirma que fazia sozinha o serviço que demandava o trabalho de duas pessoas. A ação trabalhista também cita que os equipamentos de segurança não eram adequados – Ivete alega que recebeu apenas um protetor auricular, trabalhava com luvas rasgadas, calça transparente e pegava emprestadas blusas de outros empregados.
Em sua defesa, a empresa alegou que não teve qualquer culpa em relação ao ocorrido, “vez que não tinha conhecimento da gravidez e não se omitiu em prestar socorro” e que “não houve qualquer recusa, omissão ou descaso por parte da em atender sua solicitação para ser liberada”.
Segundo a FriGol, no dia do aborto, a trabalhadora omitiu que estava grávida e pediu apenas liberação para acompanhar a outra filha em uma consulta médica. Em 19 de novembro de 2024, a FriGol foi condenada pela Vara do Trabalho de São Félix do Xingu a indenizar a trabalhadora em R$ 25.549,39, referentes a rescisão indireta, valores previdenciários e indenização por danos morais.
O juiz Eduardo Ezon Nunes dos Santos Ferraz considerou que o fato gerou “repercussões pessoais e sociais negativas” à trabalhadora, em razão da negligência na conduta após o aborto sofrido e na falha em fornecer de maneira contínua equipamentos que poderiam reduzir a exposição da trabalhadora a agentes insalubres como o ruído.
A FriGol recorreu ao Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT8) e conseguiu reverter a decisão, o que ocorreu em 13 de agosto de 2025. Por maioria, os desembargadores aceitaram o argumento de que não há provas de que a empresa tinha conhecimento da gravidez até o dia do aborto e que não houve omissão.
Dois meses e meio antes do caso de Ivete, Ana, uma auxiliar de limpeza da FriGol também sofreu um aborto espontâneo por negligência da empresa, de acordo com a trabalhadora. Sua função era a de trocar sacos de lixos pesados, limpar banheiros com produtos químicos e ajudar na “bateção de água” – o processo de esfregar chão e paredes de ambientes de abate para remover resíduos dos animais.
A mulher narra que, em 8 de fevereiro de 2024, passou mal e buscou um posto de saúde. O médico recomendou que ela fosse imediatamente afastada das funções, tendo em vista a exposição a produtos químicos. A empresa, no entanto, apenas sugeriu que ela fosse realocada no setor de desossa, o que ela rejeitou.
“Eu já tinha alertado o RH que eu não poderia mexer com produtos químicos, por conta da gravidez. O médico que fazia o meu pré-natal disse que era uma área de risco, mas demoraram para me transferir. Nesse tempo, o neném acabou falecendo na minha barriga”, relembra.
O aborto foi constatado em 7 de março de 2024. A situação também deu origem a uma ação trabalhista, cujo desfecho foi favorável ao frigorífico. Na decisão, o juiz considerou que não ficou comprovado o nexo entre a atividade desempenhada e o aborto e nem a atuação em ambientes insalubres.
Os casos de São Félix do Xingu se assemelham ao da trabalhadora venezuelana que perdeu as filhas gêmeas ao entrar em trabalho de parto na portaria da BRF, em Lucas do Rio Verde (MT), em abril de 2024. Ela também alegou ter sido impedida pela chefia de deixar o trabalho para não atrapalhar o funcionamento da linha de produção.
A mulher acabou dando à luz dentro das instalações da empresa, sem auxílio sequer da equipe de saúde do local. As bebês morreram momentos após o parto. As condições de trabalho em frigoríficos são especialmente violentas para gestantes.
Os abortos sofridos pelas duas trabalhadoras da FriGol não são fatos isolados, tampouco ocasionais. São amostras de um contexto estrutural de sistemáticas violações contra direitos fundamentais de mulheres, de acordo com especialistas ouvidos pelo Joio.
“São ambientes agressivos à vida humana, com jornadas muito longas, salários baixos e acesso limitado a direitos básicos, como saúde e previdência”, contextualiza o procurador do Trabalho Sandro Eduardo Sardá, coordenador nacional do projeto de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos do Ministério Público do Trabalho (MPT).
O projeto entrou em vigor em 2017 e tem o objetivo de adequar os ambientes de trabalho, por meio de vistorias e ações civis públicas, a fim de preservar a saúde e a dignidade de trabalhadoras e trabalhadores.
Para o MPT, a exposição de gestantes a numerosos agentes de risco viola direitos fundamentais como a proteção à maternidade, à infância, à vida e ao meio ambiente do trabalho equilibrado.
“Nos últimos quinze anos, o MPT vem alertando todo o setor que a exposição de gestantes e nascituros a condições de trabalho inadequadas podem gerar danos irreparáveis às trabalhadoras, aos nascituros e a toda a sociedade”, afirma Sardá.
Ainda não há literatura científica robusta sobre a real causa dos abortos em frigoríficos, mas existem evidências de que são mais frequentes do que em outras atividades econômicas.
“Não se discute que há o problema: já sabemos que mulheres em frigoríficos abortam mais do que outras, em média. O que falta é esclarecer quais são as causas exatas. É uma dívida que a ciência ainda tem com a sociedade”, comenta o médico Roberto Ruiz, doutor em saúde pública e diretor de Saúde e Segurança no Trabalho da União Internacional dos Trabalhadores da Alimentação (Rel UITA).
Apesar da lacuna nos dados, é possível observar rastros a partir de um número expressivo de problemas gestacionais que podem levar ao aborto. Conforme dados do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), disponibilizados pelo MPT, questões relacionadas à gravidez representam 5,17% de todos os todos os benefícios previdenciários do tipo não acidentário concedidos no setor.
O número é considerável, visto que o Ministério Público estima que o número de gestantes em relação ao total de empregados em frigoríficos não passe de 0,5%.
Ao todo, foram 14.342 afastamentos na série histórica, entre 2012 e 2024. A maior parte se deu por hemorragia no início da gravidez (4.701), parto prematuro (1.502), descolamentos abruptos de placenta (364) e hipertensão pré-existente complicando a gravidez (271), situações que podem acarretar abortamento. No mesmo período, apenas 516 abortos foram registrados, em clara subnotificação.
“O que vemos é um cenário de absoluto descontrole, porque não existe nenhuma política específica de não submissão das gestantes a essas situações de risco. Na verdade, elas são mantidas normalmente, sem nem que saibam dos riscos. É normal nos depararmos com mulheres com oito meses de gestação em locais assim, por exemplo. É uma situação que já extrapolou o mero descuido”, relata a procuradora do Trabalho Priscila Dibi Schvarcz, coordenadora do projeto Frigoríficos no Rio Grande do Sul.
Um outro estudo, publicado por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) em 2010, chegou à conclusão que trabalhadoras de frigoríficos de aves e suínos têm 444% mais chances de hemorragia no início da gravidez do que em outros setores econômicos, também com base em dados do INSS coletados no estado.
A reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) concebida pelo governo de Michel Temer, sancionada em 2017, precarizou o trabalho das gestantes em frigoríficos ao permitir que elas fossem alocadas em setores insalubres, explica o procurador Sandro Eduardo Sardá, coordenador do projeto Frigoríficos.
O Supremo Tribunal Federal declarou essa permissão inconstitucional em maio de 2019. Como resposta, o setor passou a não reconhecer a insalubridade, com base em laudos próprios que consideram que o fornecimento de equipamentos basta para eliminar os riscos. Com isso, além de não receberem adicional, as gestantes permaneceram em ambientes de risco.
“Apesar de não ter eliminado os agentes nocivos à saúde das trabalhadoras, o setor vem suprimindo o pagamento do adicional de insalubridade, mantendo as gestantes em contato com elevados agentes de riscos”, ressalta o procurador.
A postura é reflexo de uma cultura de “produtividade a qualquer custo” adotada pelos frigoríficos, declara Sardá.
Coordenado pelo médico Roberto Ruiz, o Observatório de Saúde, Trabalho e Ambiente no Agronegócio (ObAgro), grupo de pesquisadores dedicados a temas relacionadas a área de trabalho, saúde e meio ambiente no agronegócio, sugere a criação do programa “Gestantes de Frigoríficos (GFrigo)”, cujo objetivo é gerar mais segurança no trabalho para trabalhadoras grávidas. A ideia é oferecer um serviço gratuito de suporte médico específico às gestantes dos frigoríficos por WhatsApp.
“O serviço não substitui o acompanhamento e o pré-natal. Ao contrário, reforça a necessidade de um olhar especializado para a cadeia da carne, porque, embora tenham competência na sua área, a imensa maioria dos médicos obstetras não conhece um ambiente de trabalho de frigorífico”.
O grupo ainda busca apoio financeiro para efetivar a iniciativa. Para Ruiz, a proteção de mães e filhos é dever de toda a sociedade. “Uma sociedade que não protege as gestantes e a infância é uma sociedade sem futuro algum. Se não nos atentarmos a isso, estaremos fadados à extinção”.