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Com a auditora fiscal Luciana de Carvalho
Campanha internacional #SoniaLivre

Sônia é a cara do Brasil

O caso de Sônia Maria de Jesus veio à tona em junho de 2023, quando foi resgatada de condições análogas à escravidão durante uma operação realizada na casa do desenbargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), Jorge Luiz de Borba, em Florianópolis (SC).

Amalia Antúnez

14 | 6 | 2024


Foto: bemblogado.com.br

Após três meses, a decisão de um juiz da Justiça Federal autorizou a visita da família Borba ao abrigo onde Sônia estava depois do resgate e, em uma manobra com tons de manipulação vil, eles a levaram de volta para a casa de onde foi resgatada.

A verdadeira família da Sônia Maria decidiu denunciar publicamente o caso para que ela possa se reunir com seus irmãos e irmãs e ter acesso aos direitos que lhe foram negados durante os 40 anos em que esteve como empregada doméstica dos Borba sem salário nem descanso, sem educação nem documentação.

Sobre o caso da Sônia, conversamos com a auditora fiscal Luciana de Carvalho, coordenadora regional do Projeto de Inclusão de Pessoas com Deficiência e Reabilitadas no mercado de trabalho.

-Você participou do processo de ressocialização da Sônia durante o período em que ela esteve resgatada. Conta pra gente os antecedentes desse caso e como você se envolveu.
-No caso específico de Sônia, a denúncia foi feita de forma anônima ao Ministério Público do Trabalho (MPT), grande aliado da Auditoria Fiscal do Trabalho.

Quando essa denúncia chegou e foi constatado que era a respeito de uma pessoa que trabalha na casa de um desembargador, algo muito grave, o Ministério Público do Trabalho decidiu realizar uma investigação preliminar antes de encaminhar o caso para a Auditoria Fiscal.

Esse período de coleta de dados e provas ocorreu um ano antes do resgate propriamente dito.

Como o acusado possui foro privilegiado, o Ministério Público Federal precisava previamente de uma autorização da Justiça Federal, que a concedeu.

Coordenação

As ações de combate ao trabalho escravo no Brasil são sempre coordenadas por um auditor fiscal do trabalho.

A política pública segue um fluxo que responde a essa coordenação e tem como aliados naturais no processo o MPT, a Defensoria Pública da União, a Polícia Federal ou Polícia Rodoviária Federal e o Ministério Público Federal.

O caso da Sônia foi coordenado por Humberto Camasmie, um procurador com longa trajetória e comprovada experiência no resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão, especialmente do trabalho escravo doméstico.

Eu não participei do planejamento e da execução desta ação fiscal, fui convocada depois do resgate porque atuo aqui em Santa Catarina nos projetos de combate ao trabalho infantil, aprendizagem profissional e inclusão de pessoas com deficiência no mundo do trabalho.

Como a Sônia é uma trabalhadora portadora de deficiência auditiva, pediram minha ajuda para ajudar a gerenciar com a rede de proteção um lugar seguro onde ela pudesse ficar e também tivesse acesso a convivência comunitária e educacional. Esta é a razão pela qual entrei nesta história.

-Como a Sônia é, como você a descreveria?
-Antes de mais nada, gostaria de destacar que os auditores que atuam na área de pessoas com deficiência acabam muito envolvidos porque faz parte do nosso trabalho, pela legislação, coordenar com a rede de proteção, com aliados institucionais.

Nós vivenciamos de perto as histórias de preconceito e racismo que essas pessoas e suas famílias enfrentam.

A história da Sônia

O resgate da Sônia começou a ser coordenado numa terça-feira de junho de 2023 e foi realizado na sexta-feira, pois era essencial ter um local para abrigá-la, principalmente pelo fato de ela não conseguir se comunicar bem.

Ela não é apenas surda, é analfabeta em Língua Brasileira de Sinais (Libras) porque foi privada do direito fundamental à educação.

Quando me disseram que ela foi resgatada, fui ao MPT preparada para interagir com ela. Levei alguns livros para colorir e desenhar, e nossa conexão foi imediata e acredito que recíproca.

Temos quase a mesma idade —eu tenho 48 e Sônia 50—, mas quando nos encontramos pela primeira vez, ela ainda parecia um bichinho assustado, interagia pouco, seguia os comandos de forma muito automatizada.

Sin embargo, el progreso durante la primera semana de socialización junto a la Asociación de Sordos de la Gran Florianópolis, que la recibió de brazos abiertos, fue enorme.

No início, ela usava apenas uma cor e saía dos contornos dos desenhos, e em uma semana já havia conseguido avançar muito e muito rápido.

Ela é uma pessoa muito doce, sempre sorridente, e dói no coração conhecer sua história. Ao ver tudo o que ela floresceu em tão pouco tempo em termos de educação, é inevitável perguntar onde essa mulher poderia estar hoje em dia se tivesse tido acesso aos seus direitos básicos.

Sem poder escolher

-Como você viveu o retorno dela para a família Borba? Pode ser um caso de Síndrome de Estocolmo?
-No Brasil, a legislação prevê que pessoas com deficiência devem poder expressar sua vontade de forma livre e informada.

Do meu ponto de vista, que é compartilhado por outros profissionais e especialistas no assunto, a Sonia não estava nessa situação quando decidiu voltar para a família que a submeteu a condições de semiescravidão por quatro décadas.

Ela não tinha ideia de que tinha uma família, uma mãe que a procurou até o dia de sua morte, em 2016, que tinha irmãos que sabiam dela e de sua busca incansável.

Ela não sabia que, quando veio morar com a família do desembargador, ainda era menor de idade e que a educação no Brasil é obrigatória dos 4 aos 17 anos de idade, tendo assim o direito de ser escolarizada.

A Sônia também não sabia que tinha direito à convivência comunitária. Sempre que precisava sair daquela casa, saía acompanhada por alguém da família. Ela não tinha amigos, não pôde se apaixonar, foi negado a ela o direito a uma vida como qualquer outro ser humano.

Embora seja possível que ela quisesse voltar para a família do desembargador porque aquele era o único mundo que conhecia por 40 anos e talvez tenha traços do Síndrome de Estocolmo, estou certa de que, se soubesse que tinha a opção de não ir, ela teria feito essa escolha.

-Por quanto tempo Sonia esteve fora da casa dos Borba?
-Ela esteve três meses no abrigo, e nos primeiros dias de aula na Associação de Surdos, onde estava aprendendo Libras, mostrou grande interesse na convivência e no aprendizado.

Eu a acompanhei várias vezes e quando, por alguma razão, nos atrasávamos, ela ficava ansiosa porque adorava ir para a aula. Nunca manifestou nesse período querer voltar para a casa do desembargador Borba.

No dia em que foram vê-la porque outro juiz autorizou a visita, o combinado era que iriam poucas pessoas, mas foram pelo menos 10 advogados e os netos, que a Sônia viu crescer, com álbuns de fotos, etc.

Não foi algo inocente e de forma que ela pudesse entender que poderia dizer não.

Às pessoas com algum tipo de deficiência é concedido o direito de tomar uma decisão planejada e apoiada, e isso não foi o que aconteceu.

"Como parte da família"

-- No entanto, o desembargador Borba e sua esposa afirmam que Sônia é como parte da família, algo que resulta em um cinismo terrível se conhecemos a história.
-Infelizmente, no Brasil esse tipo de alegação é mais comum do que se imagina.

O discurso “é como parte da família”, “é como uma filha” serve apenas para privar as pessoas de seus direitos trabalhistas básicos. Não é uma figura que exista no direito.

Esse tipo de alegação é resultado de uma sociedade com uma matriz escravista, uma sociedade racista, capacitista.

Se seguirmos o que declaram o juiz e sua esposa, como se explica que a filha de uma família de classe média alta, que é surda, não tenha acesso a documentos de identidade, não tenha acesso à educação, a um plano de saúde, a cartões de crédito, a dinheiro, a amigos, a um parceiro, a ir ao salão de beleza, à academia?

-Como surgiu a ideia de uma campanha global para libertar a Sônia?
-Por iniciativa da família da Sônia, dos seus irmãos e irmãs especificamente, porque este caso foi cercado de silenciamentos.

O primeiro desses silenciamentos é que Sônia não tenha sido alfabetizada em português e Libras, o segundo é que foi concedido ao desembargador que as ações judiciais permanecessem em sigilo e o terceiro é que foi retirado da causa o procurador Humberto Camasmie depois que falou na televisão sobre o caso, quando a Sônia já havia sido resgatada e tudo era público.

Camasmie deu atenção ao MPT junto com outro promotor, mas apenas ele foi denunciado e acreditamos que isso está atacando diretamente a política pública de combate ao trabalho escravo no Brasil. É uma forma de amedrontar outros colegas que se dedicam a isso.

Quando o ministro do Superior Tribunal de Justiça Mauro Campbell Marques, autorizou a visita ao abrigo, algo estranho pois é um lugar para mulheres vítimas de violência, a Defensoria Pública da União tentou anular essa medida sem sucesso, e foi assim que Sônia voltou para a família que por 40 anos a manteve em condições análogas à escravidão.

A campanha

Nesse momento, a família da Sônia percebeu que poderia perdê-la novamente, pois o desembargador Borba entrou com uma ação de reconhecimento de paternidade no Supremo Tribunal de Santa Catarina, onde ele atua como magistrado.

A família então decidiu realizar uma campanha de denúncia internacional, #SoniaLivre, pois ainda não há uma decisão final sobre o cerne do caso, que será tomada pela Tribunal de Justiça.

A ideia é colocar luz sobre essa causa e fazer com que todas as pessoas que tenham pontos em comum, ou que suas histórias sejam atravessadas por alguma das coisas que a Sônia sofreu, se vejam refletidas nela e exijam da justiça uma decisão que permita que ela possa, livremente, conviver com sua família e na sociedade, e ter acesso a direitos básicos.

A Sônia são muitas: Sônia é mulher, é negra, é uma pessoa com deficiência, foi vítima de trabalho infantil e de trabalho análogo à escravidão, é trabalhadora doméstica. Em resumo, a Sônia é a cara do Brasil.