Com Jair Krischke
“Lula causou um enorme prejuízo” ao movimento dos direitos humanos no Brasil ao proibir as comemorações oficiais do 60º aniversário do golpe de Estado que derrubou o presidente João Goulart e instaurou a ditadura mais longa da história do país, disse Jair Krischke à La Rel.
Daniel Gatti
4 | 4 | 2024
Manifestação contra a ditadura em 1968 no Rio de Janeiro | Foto: Arquivo Nacional / Correio da Manhã
O presidente do Brasil tomou essa decisão “para aproximar”, segundo ele disse, “as Forças Armadas da sociedade brasileira”, mas o que ele realmente fez foi “ajoelhar-se” diante dos chefes militares, foi o comentário do principal representante do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) e assessor da Rel-UITA.
“Foi um erro tremendo, uma barbaridade”, entre outras coisas, porque há pouco mais de um ano, o próprio Lula teve que enfrentar uma tentativa de golpe de Estado por parte de um homem que anseia e defende a ditadura implantada há seis décadas, o ex-capitão do Exército brasileiro e ex-presidente Jair Bolsonaro", enfatizou Krischke.
“Lula não é nenhum tolo e sabe perfeitamente que a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 foi graças aos golpistas de 1964 terem ficado impunes”, acrescentou.
A medida governamental levou ao cancelamento de eventos programados pelo próprio Executivo, como uma homenagem aos perseguidos pela ditadura planejada pelo Ministério dos Direitos Humanos.
No ano passado, o governo de Lula proibiu a celebração do 59º aniversário do golpe nos quartéis.
“Essa proibição era justa e coerente com a defesa da democracia: o Estado não pode permitir que alguma de suas instituições comemore um ato que representou a violação de suas próprias leis e uma tragédia para os brasileiros”, afirmaram membros da Coalizão Brasil pela Memória, Verdade e Justiça.
Mas esta proibição de agora não tem nada a ver com aquela do ano passado. São quase que de sinais opostos.
Não aceitaremos que, mais uma vez, os governos negociem ou abdiquem dos direitos das vítimas para poder contemporizar com os militares. Não aceitaremos mais essa tutela cujo preço histórico foi pago pelos familiares e por todos os afetados pelos atos de exceção da ditadura", destacou a coalizão, que reúne mais de 150 associações, em um comunicado.
“Repudiar veementemente o golpe de 1964 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir também os golpes do presente e eventuais tentativas futuras”, acrescentou.
“Manter a memória e a verdade histórica sobre o golpe militar (...) é crucial para evitar que esta tragédia se repita, como quase aconteceu recentemente”, escreveu a ex-presidenta Dilma Rousseff nas redes sociais. Ela participou na segunda-feira, dia 1º, em São Paulo, de uma concentração em frente ao maior centro clandestino de detenção e tortura da ditadura.
Os manifestantes exigiram a reinstalação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, dissolvida por Bolsonaro. Lula prometeu restabelecê-la, mas ainda não o fez.
Lucas Pedretti, um jovem historiador e sociólogo brasileiro especializado na época da ditadura, comentou que “nunca houve uma conjuntura tão propícia como a atual para discutir o papel das Forças Armadas na sociedade brasileira”.
No entanto, Lula fez “um cálculo político que coloca em primeiro plano uma estratégia de acomodação com as Forças Armadas, em detrimento e prejuízo das necessidades históricas da sociedade brasileira de revisitar seu passado”, disse Pedretti à agência francesa AFP.
“Apesar disso, a sociedade civil continua se mobilizando e continuará a fazê-lo”, afirmou Krischke. A partir desta semana, o MJDH planeja uma série de iniciativas para lembrar o golpe e seus reflexos no presente. As atividades ocorrerão ao longo de todo o ano.
Entre as iniciativas planejadas, está uma de “forte simbolismo”: a promoção da construção em Porto Alegre de um monumento em bronze em tamanho natural de João Goulart.
“Nesta segunda-feira, dia 1º, nós enviamos esse pedido assinado por três ex-prefeitos da cidade. O prefeito atual é bolsonarista, mas talvez não possa dizer não”, disse Krischke, esperançoso.
O “retrocesso” de Lula não ajuda precisamente a fortalecer esse pedido nem qualquer outro que vá na mesma direção. Pois representa uma “submissão aos golpistas e à sua narrativa”, que aliás estes últimos saberão ler, insistiu Jair.
Em uma época como a atual, em que as extremas-direitas avançam por todo o planeta, uma atitude diferente teria sido muito bem-vinda.
Teria sido bom, por exemplo, “lembrar os apoios que o golpe recebeu de uma parte do empresariado, e principalmente como os Estados Unidos o promoveram, coordenando e preparando tudo, utilizando-se para isso dos principais meios de comunicação e pagando a jornalistas”.
Krischke lembrou que o governo de Goulart não era revolucionário nem nada perto disso, mas sim suficientemente reformista para que Washington cortasse suas asas.
“Impulsionava uma reforma agrária, sim, mas que não questionava minimamente o sistema capitalista; e havia resolvido impor controles às empresas transnacionais, mas para que não levassem para fora do país todo o lucro gerado, como faziam antes”.
Bastaram essas medidas, e algumas outras, como a adoção de um estatuto para o trabalhador rural, o lançamento de um plano de alfabetização em um país onde 40 por cento dos habitantes eram analfabetos, ou a abertura das universidades para os filhos dos trabalhadores, para que os Estados Unidos o rotulassem de “comunista”.
Naquela época, com a Revolução Cubana tão recente e tão influente em toda a região, o fato de o Brasil, o país de maior importância estratégica na América do Sul, tomar um rumo desafiador era intolerável para o padrão estabelecido no continente.
A inspiração norte-americana do golpe brasileiro foi, naquele então, retratada nos muros do Rio.
“Deixemos de intermediários: Lincoln Gordon presidente já”, podia-se ver a pichação em uma parede, referindo-se ao então embaixador dos Estados Unidos em Brasília e futuro Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos.
“Os cariocas têm um humor fino e irônico que os distingue. E às vezes é tão preciso”, elogiou Krischke.
Em 1º de abril de 1964 —não em 31 de março, como geralmente afirmado, diz Jair— o general Olímpio Mourão Filho marchou com suas tropas da Quarta Região Militar, em Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro, precipitando um golpe inicialmente previsto para maio.
Três dias depois —e não no final de março, como mentiram os golpistas— Goulart deixou o Brasil, refugiando-se no Uruguai, e anos depois na Argentina, onde morreria poucos meses após o golpe de Estado de março de 1976, oficialmente de um ataque cardíaco, quando Buenos Aires já era a principal plataforma do Plano Condor de cooperação entre as ditaduras sul-americanas.
“O governo Goulart era democrático, justo, civilista, desenvolvimentista”, disse Jair anos atrás à Rel, “integrado por universitários de altíssimo nível que mais tarde se tornaram professores nas melhores universidades do mundo”, esclarece.
“Recordar aquele período com um senso de atualidade e de futuro teria sido dignificante para o governo atual. Mas o Lula não quis isso”, completou.