Bifes criados em laboratório
Mais de 100 empresas em todo o mundo já produzem ou estão se preparando para produzir carne cultivada em laboratório. A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) alertam sobre os riscos potenciais presentes nesta atividade. Alguns países proibiram a fabricação, importação e comercialização, enquanto outros estão agilizando para dar sinal verde. Mais do que nunca, a indústria alimentícia avança em direção a tomar o controle do sustento humano de forma cada vez maior e mais integral.
Carlos Amorín
19 | 2 | 2024
Foto: Gerardo Iglesias
O primeiro restaurante no mundo a incluir nuggets de carne de frango artificial em seu cardápio está localizado em Singapura. Isso aconteceu após o órgão regulador do país autorizar seu consumo no final de 2020. A empresa responsável por produzir essa carne é sediada em São Francisco, Estados Unidos, e é liderada por um CEO de sobrenome chamativo e propenso a memes, especialmente associados ao frango de laboratório: Tetrik Josh é seu nome.
Em 2021, o Catar autorizou a produção de carne cultivada em laboratório dentro de uma Zona Franca considerada extraterritorial em relação à legislação local. Até recentemente, a comercialização deste produto ainda não tinha sido permitida dentro do país.
Israel é outro país que avança rapidamente para consolidar o desenvolvimento e estabelecimento desta indústria. De fato, já existe a primeira fábrica localizada em Rehovot, uma cidade a cerca de 20 quilômetros ao sul de Tel Aviv. A empresa pertence à Future Meat Technologies e afirma produzir 500 quilos de carne bovina diariamente. Aliás, já foi até considerada kosher pelos rabinos-chefes de Israel.
Em meados de 2023, a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA) dos Estados Unidos também autorizou a produção, venda e consumo de carne sintética de frango a partir de uma solicitação da empresa Upside Foods. Até o momento, tal carne sintética está sendo oferecida a clientes muito exclusivos em apenas dois restaurantes, por ser um produto escasso e muito caro.
O que é carne sintética? É de plástico? É lixo reciclado? É vegetal transformado em carne? É adequada para vegetarianos? É menos poluente que a convencional? É saudável?
A carne cultivada é produzida em laboratório a partir de células-tronco extraídas de tecido animal, seja de vaca, porco, frango, etc. Essas células são “alimentadas” em um “biorreator” com várias substâncias, como soro fetal bovino, mioglobina (uma proteína muito semelhante à hemoglobina), vitaminas, aminoácidos, gordura e tecido conectivo, entre outros, formando o que é chamado de “meio de cultura”.
A partir daí, por meio de vários procedimentos e manipulações, consegue-se produzir uma carne que busca substituir a convencional. As células-tronco precisam crescer dentro de uma estrutura, então são colocadas em discos com uma espécie de “guias” pelas quais se desenvolvem de maneira semelhante a uma trepadeira, mas de forma mais compacta. Essas guias são feitas de amido, pectinas ou outras substâncias que, ao concluir o processo, ficam incorporadas no produto final. A tonalidade muscular da carne é obtida por meio de uma “estimulação elétrica”.
Mas, é carne? Tecnicamente, sim, assim como uma semente transgênica ainda é uma semente ou uma ovelha clonada ainda é uma ovelha. No entanto, ainda é muito cedo para saber se suas características organolépticas são semelhantes às da carne natural, ou quais podem ser as consequências sanitárias do seu consumo por períodos prolongados, e até se sua pegada ambiental será menor ou maior do que a da produção convencional.
Preocupadas com essas interrogantes, a FAO e a OMS reuniram um painel de 13 especialistas internacionais que debateram, entre 1 e 4 de novembro de 2022, em Singapura, os “Aspectos de segurança alimentar dos alimentos de origem celular”.
O relatório resultante, publicado em 2023, conclui apontando vários riscos potenciais do que define como “alimentos produzidos à base de células”. Esses riscos surgem em quatro etapas diferentes do processo:
• Coleta de células-tronco
• Processo de produção
• “Colheita” final do produto
• Processamento subsequente do alimento
Conforme o relatório, existem 53 fontes potenciais de perigo que podem causar problemas e consequências negativas para a saúde. Entre eles estão a contaminação por metais pesados, microplásticos e nanoplásticos, alérgenos como aditivos para melhorar o sabor e a textura desses produtos, presença de contaminantes químicos e compostos tóxicos, antibióticos e príons, entre outros.
Embora muitos perigos já sejam conhecidos e estejam presentes nos alimentos produzidos de forma convencional, os especialistas concordaram que a atenção deve se concentrar nos materiais, insumos, ingredientes, alérgenos potenciais e equipamentos específicos¹ que desempenham um papel especial na produção de alimentos celulares.
Deve-se dedicar uma atenção especial ao controle do processo de multiplicação e crescimento das células nos biorreatores, uma vez que são utilizados componentes biológicos, como fatores de crescimento, e hormônios de soro animal ou de origem não animal para desencadear e acelerar o cultivo celular.
Algumas dessas substâncias podem interferir no metabolismo e foram identificadas como possíveis precursoras de certos tipos de câncer. Se esses efeitos forem confirmados, poderiam ser considerados especialmente graves para a saúde humana.
A conclusão do painel de especialistas da FAO e da OMS é que ainda há muita informação faltante para adotar um critério definitivo sobre a segurança dos alimentos produzidos com base em células. No entanto, destaca-se a importância deste primeiro passo em direção a uma avaliação completa dos riscos desses alimentos.
Em outros contextos, alguns cientistas estimam que a carne artificial nunca poderá substituir a natural e identificam diferenças significativas nas propriedades sensoriais, nutricionais e de textura, bem como a ausência de passos importantes para melhorar a qualidade na transformação do músculo em carne convencional.
Finalmente, o relatório da FAO e OMS exorta à precaução, uma vez que ainda faltam muitas informações concretas sobre a segurança e sanidade da carne cultivada.
Foto: Gerardo Iglesias
Além da questão sobre como seria a disposição final dos resíduos do processo de produção, alguns pesquisadores apontam que o cultivo de alimentos a partir de células é energeticamente muito exigente, e que sua pegada ambiental seria muito maior do que a da produção natural.
A grande quantidade de energia utilizada geraria uma intensa emissão de CO2, muito mais persistente na atmosfera do que o metano liberado pelo gado.
A Itália tornou-se o primeiro país europeu a proibir por lei o cultivo de carne a partir de células. Atualmente, os governos do Paraguai e do Brasil estão analisando a possibilidade de seguir o mesmo caminho, enquanto no Uruguai, o Parlamento aprovou um artigo em sua Rendição de Contas que proíbe que “se chame carne aos produtos que contenham células de cultivo animal produzidas de maneira artificial em laboratório”.
Na Argentina, a empresa Bio Ingeniería na Fabricação de Elaborados já produz carne cultivada de maneira experimental, enquanto a brasileira JBS investiu 41 milhões de dólares em uma fábrica na Espanha, em San Sebastián. Essa fábrica tem a intenção de operar como uma “planta de carne de laboratório”, onde se pretende produzir cerca de mil toneladas métricas de carne sintética por ano, com capacidade para expandir a produção para 4.000 toneladas.
A JBS anunciou que também investirá 60 milhões de dólares na instalação de um instituto de pesquisa no sul do Brasil, onde será desenvolvida tecnologia para produzir proteínas a partir de células animais.
Parece óbvio que as mais de 100 empresas que já estão produzindo ou se preparando para fazê-lo em todo o mundo, mais cedo ou mais tarde, iniciarão uma campanha de marketing destacando os benefícios ambientais de não utilizar animais vivos para obter carne, assim como suas vantagens éticas ao evitar o sacrifício de seres vivos.
Na realidade, todos compreendemos que se trata de um movimento na direção de capitais de risco e fundos de investimento, avançando mais um passo dentro da estrutura de produção, distribuição e comercialização de alimentos.
O princípio desses capitais continua sendo o mesmo: tudo é conveniente, contanto que gere lucro.
Eliminar a etapa mais longa e trabalhosa da produção de carne, que é a criação de animais, e introduzir todo o processo dentro de galpões com ar-condicionado, reduzindo em até dez vezes ou mais o tempo de produção, é, simplesmente, um bilhete que promete engordar ainda mais a carteira de dinheiro.
Fontes:
FAO e OMS; rumiantes.com; Ecoportal; news.agrofy.com.ar/Diario de Luján e fontes própias.
¹ Lembremos o caso relatado em “Nosso Futuro Roubado”, de Theo Colborn, Dianne Dumanoski e Pete Myers, no qual as substâncias que promoviam um crescimento explosivo de células cancerosas em um cultivo de laboratório vinham de sondas de plástico que transportavam o “alimento” para esses experimentos.