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Exploração a bordo
Acabe com a sua vida trabalhando em um cruzeiro
A reativação do turismo trouxe o retorno de situações de massificação que prejudicam a vida cotidiana em muitas cidades. Os navios de cruzeiro voltaram a estar no centro do debate e são postas na mesa iniciativas para limitar a sua presença em diferentes portos, como em Palma ou mais recentemente em Barcelona, na Espanha. Estas medidas são imprescindíveis, se não quisermos que a turistificação das nossas cidades continue piorando.
Ernest Cañada*
1 | 6 | 2022
Foto: Pexels
O debate sobre as viagens de cruzeiro tem-se centrado nos seus impactos ambientais, principalmente por causar poluição atmosférica, mas não é só isso, tendo em vista que os navios de cruzeiro provocam congestionamentos nos portos.
Mas há um aspecto muitas vezes pouco presente na discussão: o que acontece com as tripulações desses navios e, sobretudo, em que condições realizam seu trabalho?
São milhares de pessoas empregadas neste setor e, apesar de serem os gigantes dos mares, as cidades que os recebem sabem muito pouco sobre o que acontece dentro desses navios de cruzeiro. As violações dos direitos trabalhistas e das condições de trabalho tornam imperioso um maior controle sobre o que acontece lá dentro.
Diferentes estudos acadêmicos, incluindo a tese de doutorado defendida no Brasil em 2021 pela professora Angela Teberga de Paula, que também colabora com a ALBA SUD, uma associação catalã especializada em pesquisa e comunicação para o desenvolvimento, alertaram para os diferentes tipos de problemas relacionados ao trabalho das tripulações dos navios de cruzeiro.
O interesse desta pesquisadora pelo assunto surgiu quando, durante a temporada 2013-2014, a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho do Governo Federal do Brasil iniciou uma investigação ao navio de cruzeiro MSC Magnifica, da empresa MSC Crociere SA, decorrente de denúncias feitas por alguns membros da sua tripulação e pela Organização de Vítimas de Cruzeiros (OVC).
As infrações apuradas pela equipe de inspeção do trabalho se concentravam nas exaustivas jornadas de trabalho.
Detectaram fraudes no registo da jornada de trabalho, incumprimento do dia de descanso semanal, descanso insuficiente entre as jornadas de trabalho ou à hora das refeições, bem como irregulares jornadas de trabalho prolongadas. A Subsecretaria de Inspeção do Trabalho encerrou sua ação resgatando onze pessoas que trabalhavam naquele navio.
Diante desse tipo de situação, o Ministério Público do Trabalho, em 2014, ajuizou ação contra a empresa por condições degradantes de trabalho e violadoras da dignidade do ser humano, por se utilizarem de jornadas exaustivas.
Um ano depois, a Justiça do Trabalho de Salvador da Bahia emitiu sentença parcialmente favorável àqueles trabalhadores.
Em agosto de 2018, um tribunal de ordem superior manteve a decisão proferida em primeira instância e condenou a empresa a pagar indenização por danos morais.
Esse episódio impactou fortemente em Ângela Teberga de Paula, que acompanhou as organizações dos trabalhadores de cruzeiros em suas denúncias em diversos fóruns, até chegar a uma Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado brasileiro sobre as condições de trabalho dentro dos navios de cruzeiro, em 25 de novembro de 2019.
Em sua intervenção, a pesquisadora denunciou como nos navios de cruzeiro as jornadas de trabalho eram muito maiores do que o estabelecido nos contratos de trabalho e que, além disso, era comum a dinâmica de intensificação do trabalho por longos períodos.
Com uma exaustiva investigação sobre esse fenômeno de prolongamento e intensificação do trabalho, alguns anos depois apresentou sua tese de doutorado, obtendo nota máxima. Ângela Teberga de Paula também publicou um resumo de seu estudo em um relatório publicado pela Alba Sud.
O fato de o setor de cruzeiros estar altamente concentrado em poucas empresas, em uma atividade altamente globalizada, significa que o que acontece em um navio está intimamente vinculado a todos os lugares por onde o cruzeiro fizer a sua rota.
Portanto, os fatos analisados e descritos por Ângela Teberga de Paula têm a ver com as cidades portuárias brasileiras, mas também com Miami, Cozumel e com os portos das cidades mediterrâneas.
Receber esses navios em nossas cidades também significa assumir a responsabilidade pelo que acontece com suas tripulações, se os direitos fundamentais são ou não violados e em que termos.
É necessário regular e limitar os navios de cruzeiro que atracam nos portos de muitas cidades turistificadas, por razões de saúde pública e devido à deterioração das dinâmicas sociais que isso implica. Mas, também é importante promover uma vigilância rigorosa por parte das autoridades competentes, de olho nas condições de trabalho dentro dos cruzeiros marítimos.
A corresponsabilidade em matéria de direitos humanos é incontornável, batendo à sua porta é obrigatória.
*Ernest Cañada é pesquisador com pós-doutorado pela Universidade das Ilhas Baleares e membro da Alba Sud.