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“Efeitos colaterais” da guerra da Ucrânia e Rússia

Nem paz nem pão

Como todas as guerras, a entre a Ucrânia e a Rússia afeta em primeiríssimo lugar as populações mais vulneráveis. Neste caso, está gerando também uma inflação de preços de algumas matérias primas como os cereais, podendo aumentar perigosamente a fome em numerosos países do Terceiro Mundo.

Daniel Gatti

18 | 03 | 2022


Foto: Gerardo Iglesias

Desde a invasão russa, em 24 de fevereiro, o preço mundial da colza aumentou 74%, do trigo 66%, do óleo de girassol 40%, do milho quase 34% e da cevada mais de 18%.

A Ucrânia e a Rússia, consideradas como “o celeiro da Europa”, figuram entre os maiores produtores e exportadores do mundo desses produtos.

Se a guerra continuar, a colheita de trigo de julho, no inverno do hemisfério norte, e a temporada de semeadura da primavera, em abril e maio, poderão ser interrompidas.

É preciso também considerar as possíveis consequências de um bloqueio russo aos portos do Mar Negro para as exportações ucranianas, bem como as possíveis consequências para as exportações russas de um bloqueio ainda maior feito pelas potências ocidentais à Rússia.

Sem pão

Uma terceira parte do trigo exportado ao mundo vem da Rússia e da Ucrânia.

A Rússia é o maior exportador do cereal, com muita distância sobre o segundo, os Estados Unidos. A Ucrânia é o quinto, estando atrás da França e do Canadá.

Muitos países, alguns deles localizados entre os mais pobres do mundo, se abastecem do cereal vindo quase exclusivamente de ambos os países beligerantes.

Segundo as Nações Unidas, umas 45 nações africanas importam da Rússia e da Ucrânia pelo menos um terço do trigo que consomem. Já 18 das nações africanas importam no mínimo 50% da Rússia e da Ucrânia.

Na lista aparecem o Egito, o Afeganistão, Etiópia, Síria, Yemen, Burkina Faso, República Democrática do Congo, Líbia, Somália, Sudão, Quênia (que compra no exterior 80 por cento do trigo que consome), e o Líbano, que importa mais do 80 por cento dos alimentos básicos.

A guerra pode provocar “um furacão de fome” em todos esses países, pela escassez dos cereais e pelo aumento dos preços dessas e de outras matérias primas, além da energia, disse o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres.

O aumento do preço do trigo nos mercados internacionais levará a que, inclusive em alguns dos países que o produzem (na América Latina, Argentina, México, Brasil, Chile, Uruguai), esse aumento chegue também ao mercado interno.

“Não seria estranho que em poco tempo um pobre já não possa comprar nem mesmo um pão francês ou uma bisnaga. Vai ser proibitivo. A farinha estará os olhos da cara, e quando a guerra acabar, vai ser muito difícil que os que lucraram com este negócio baixem os preços, que estarão exorbitantes”, disse para a Rel o gerente de uma padaria do centro de Montevidéu.

“Vai ser como foi com a carne”, disse. O Uruguai produz em grandes quantidades e exporta a preço de ouro para gerar lucro fundamentalmente para as empresas proprietárias dos frigoríficos, em sua grande maioria brasileiras.

O xadrez da fome

Um dos grandes dilemas a serem enfrentados pelos causadores das guerras do lado ocidental será permitirem ou não que a Rússia continue exportando trigo para evitar, neste caso, uma catástrofe alimentar global.

A China e a Índia possuem grandes reservas de cereais, mas não são suficientes para compensar a saída da Rússia e da Ucrânia do mercado.

Além disso, os EUA temem que a China, seu principal rival comercial e econômico, atue cada vez mais como aliado da Rússia em um mundo em plena reconfiguração.

O aumento dos preços dos alimentos faz, por exemplo, que os países da África subsaariana, que até 2017 destinavam 20% do PIB em alimentos, passem a destinar 35% em 2023, os da Ásia do Sul passem a destinar 20% e não mais 15%, e os países da América Latina passem a destinar 20% e não mais 13%..

São regiões – principalmente as duas primeiras – onde boa parte de seus habitantes não comem nem o mínimo necessário.

O relatório anual 2021 da Rede Mundial contra as Crises Alimentares disse que, desde 2017, o número de pessoas em situação de “crise alimentar aguda”, isto é, cuja vida corre perigo iminente, não para de aumentar. Em 2020, eram 155 milhões em 55 países ou territórios, 20 milhões a mais do que no ano anterior.

E são 800 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, que se alimentam de forma péssima, muitas vezes tendo que deixar de fazer algumas refeições, segundo outro relatório, das agências de Nações Unidas.

Morrem a cada ano no planeta umas nove milhões de pessoas (sendo mais da metade delas crianças, isto é, umas 5 milhões), por fatores ligados à fome como a desnutrição, a má-nutrição e muitas doenças perfeitamente curáveis.

Os conflitos e a mudança climática estão invariavelmente presentes nesses relatórios, como causa da insegurança alimentar aguda. Nos dois últimos anos, também entram no relatório as medidas tomadas (ou não tomadas) contra a pandemia de Covid-19.

Esses documentos não mencionam as desigualdades inerentes ao sistema em que todas essas pessoas de quase todo o mundo vivem, nem mesmo são analisadas as origens dos “conflitos”.

Uma vaca, duas vacas

Extremadamente pobres são as populações, ou a maioria das populações das regiões em situação de insegurança alimentar. Extremadamente ricos, aliás, seus territórios.

Em um monumental livro chamado El Hambre (A Fome), publicado em 2014 e reeditado no ano passado, o jornalista e escritor argentino Martín Caparrós destaca uma coisa bem simples e bem complexa: não pode ser que em um planeta onde há décadas são produzidos mais alimentos que os necessários para alimentar toda a população do mundo, tantos sejam os que morrem de fome.

Há um problema político então: chamemos de desigualdade, de má distribuição da riqueza”, disse em uma entrevista. “A fome é a metáfora mais violenta da desigualdade”.

Caparrós afirma que decidiu fazer o livro depois que perguntou a uma mulher nigeriana qual seria o seu maior desejo se o gênio da lâmpada aparecesse, e ela respondeu: “uma vaca”. Esse seria o seu maior desejo?, o jornalista insistiu. Ela então respondeu: “Está bem, duas vacas. Porque com duas, eu nunca mais vou passar fome”.

“A República do Níger é o exemplo mais claro da fome estrutural, onde está a concentração mais evidente de como um sistema produz fome. Um lugar muito árido onde é difícil cultivar”, mas também “o segundo produtor de urânio do mundo”, explorado por “uma empresa francesa e uma chinesa”, escreveu o argentino.

O país pertence a uma área que é palco de múltiplos conflitos, de múltiplas guerras. Rica em urânio, em ouro, em petróleo. Com forte presença de transnacionais, porém com habitantes pobres de toda pobreza.