Estados Unidos | SAÚDE | DIREITOS
O (des)amor na empresa Amy’s Kitchen
«Já vi tantas pessoas se machucarem,
tanta gente sofrendo »
Gerardo Iglesias
11 | 03 | 2022
Ilustração: Allan McDonald | Rel UITA
Migração e gastronomia viajam na mesma mochila e desembarcam juntas. A comida é uma marca identitária, é uma parte importante de quem somos, identifica-nos geográfica e culturalmente, liga as pessoas às suas raízes, com saberes transmitidos de geração em geração. A comida aproxima o migrante da terra de onde saiu, principalmente se essa pessoa vier do México.
A diáspora mexicana carrega consigo sua arte culinária tradicional, fruto de intensa miscigenação, que hoje é extremamente popular em todo o mundo, principalmente nos Estados Unidos. Tacos, tortilhas, quesadillas, tamales, enchiladas e principalmente burritos são muito apreciados naquelas paragens.
O burrito é uma tortilha de farinha de trigo enrolada que pode conter carne, feijão e outros ingredientes. Desde 1895 há registros de seu nome no Dicionário de Mexicanismos, embora ainda hoje se discuta sua origem. Em 1900 já podem ser encontradas referências nos Estados Unidos. A primeira menção ao burrito surgiu em um cardápio norte-americano na década de 1930. O local era El Cholo Spanish Café, em Los Angeles.
A empresa Amy's Kitchen, com sede na Califórnia, é especializada em alimentos congelados, e os burritos são seu principal produto. Fundada em 1987 por Andy e Rachel Berliner, a empresa recebeu o nome de sua filha, Amy. Em sua propaganda institucional, a Amy's Kitchen se apresenta como uma "grande família", que respeita os direitos de todos os seus trabalhadores, que produz alimentos orgânicos, livres de transgênicos e comercializados “com amor”.
No entanto, como costuma acontecer, a realidade é muito diferente desse clima idílico, acompanhado dessa melosa “Love story” (história de amor), suntuosamente anunciada no site da Amy’s Kitchen.
"Não há amor. Eles repreendem você, eles gritam com você. É muito amor nos machucando”, dizem várias trabalhadoras, todas latinas, em um vídeo no qual descrevem o inferno diário, expressam o desejo de se sindicalizarem e denunciam a intimidação e pressão que sofrem de seus empregadores para não se filiarem a um sindicato: “Eles têm todo o povo com medo de que o sindicato pegue nosso dinheiro, que não faça nada por nós”, adverte uma delas.
"Já vi tanta gente se machucando. Pessoas sofrendo. O ritmo da produção vai mais rápido do que devia. A 'linha de burritos' é muito estressante. A gente tem que enrolar cerca de 10 burros por minuto”, comentam as trabalhadoras. “Há momentos em que a fila de burritos vai tão rápido que você não consegue nem pegar o burrito. Já ouvi muitas trabalhadoras dizerem que não conseguem dormir por causa da dor nas mãos inchadas devido às altas velocidades. Enrolar, enrolar, enrolar. Parece que eles não estão interessados em evitar que você se machuque”, é o que dizem varias trabalhadoras.
Essa é uma situação bem parecida ao que tantas vezes ouvimos das trabalhadoras dos frigoríficos do Brasil sobre o ritmo frenético, os corpos massacrados e a dor invadindo toda a existência. Tudo isso está presente nos depoimentos de cinco corajosas mulheres trabalhadoras da Amy's Kitchen que encararam de frente a luta contra a dor e a favor de seus direitos.
A cozinha tradicional mexicana é fruto de sua cultura ancestral e comunitária, criada a partir de um vínculo de respeito com a natureza, declarada Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO, e celebrada como uma oportunidade para agradecer a vida e para homenagear os entes queridos que já não estão mais aqui.
Mas a Amy's Kitchen está focada apenas em seu próprio benefício, não se importa nem se interessa por nada mais. Nessas condições, seus produtos chegam à mesa dos consumidores carregados não só de amargura, de sofrimento, de dor, mas também da revolta de quem os fabrica em um ambiente de maus-tratos e abusos.
Cada burrito é enrolado por uma trabalhadora da Amy´s Kitchen que teve os seus direitos violados.
É possível um bom apetite?