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Duzentas mortes durante uma pesquisa sobre a COVID no Brasil

Mercadores da morte

Entre fevereiro e março deste ano, 200 pessoas com Covid-19 morreram no Brasil durante um estudo científico irregular com uma substância chamada proxalutamida, que está sendo estudada para combater o câncer de próstata.

Convênio Brecha Rel UITA


Foto: Gerardo Iglesias

Escrito e lido assim é assustador. E de fato é. Entretanto, em um país com constantes notícias aterradoras, liderado por um ser que venera a morte, este caso foi, digamos assim, minimizado.

Comemorados pela família Bolsonaro e amplamente divulgados pelas redes sociais Bolsonaristas, os resultados do estudo foram publicados em março como positivos e promissores, já que quem morreu havia sido supostamente medicado com um placebo, o que demonstraria a eficácia dessa “milagrosa” substância que teria conseguido reduzir as mortes em 90 por cento, entre aqueles que receberam o tratamento.

Numa época em que a defesa da cloroquina estava perdendo força, para os bolsonaristas a proxalutamida passava a ser o novo remédio salvador.

No entanto, uma denúncia recente da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) levanta fortes questionamentos sobre os aspectos éticos e metodológicos do estudo.

Em diálogo com o jornal uruguaio Brecha, Jorge Venâncio, coordenador da CONEP e signatário da denúncia, afirmou que a pesquisa médica foi realizada «violando totalmente as normas éticas em pesquisa».

Venâncio disse que nunca viu nada parecido no país. O conjunto de erros metodológicos é tão grande, diz ele, que pode fazer com que o trabalho não tenha valor científico substancial.

Portanto, estaríamos diante de uma pesquisa que causou a morte de 200 pessoas sem chegar a nenhum resultado prático.

Gravíssima infração ética

Em nota, a Rede de Bioética da Unesco considerou que este “pode ser um dos episódios de infrações à ética em pesquisas e de violação dos direitos humanos de voluntários mais graves e sérios da história da América Latina”.

Em tese, o estudo que virou experimento era duplo-cego, ou seja, nem os pesquisadores nem os pacientes deveriam saber quem estava tomando o quê. Mas para a CONEP há fortes indícios de que isso não foi respeitado.

De acordo com a CONEP, as informações oferecidas pelos responsáveis não permitem um entendimento direto da causa das mortes, não podendo ser descartada a possibilidade de intoxicações. E se não houve óbitos por intoxicações, houve por omissões.

Diante de tantas mortes, afirma Venâncio, o médico deveria ter suspendido os estudos: «Não faz sentido ficar vendo 200 pacientes morrerem».

No texto, a CONEP denuncia a gravidade da “grande diferença de óbitos entre os dois grupos de estudo (proxalutamida / placebo) sem terem interrompido os estudos para apurarem os motivos dessas mortes”.

Diante dos fatos, era necessário quebrar o segredo clínico para saber se as mortes tinham relação com o medicamento investigado. E se, segundo os responsáveis, a substância usada com os pacientes estava tendo tantos efeitos milagrosos, por que permitir a morte de tantas pessoas que recebiam placebo?

Venâncio sentencia: “Em todos os cenários possíveis há fatos gravíssimos que devem ser esclarecidos. Diante de tantos problemas, o pesquisador tinha a obrigação de suspender a pesquisa e, em caso de que essa substância tivesse efeitos tão milagrosos, todos os pacientes deveriam ter começado a recebê-la ”.

Um “comité independente” desconhecido

Outro elemento a se considerar: os documentos enviados à CONEP falam de insuficiência renal e hepática como causa dos falecimentos.

Segundo a Comissão, taxas elevadas dessas complicações são observadas em pacientes gravemente doentes em terapia intensiva, por isso suspeita-se que esses pacientes tenham sido incluídos nos ensaios, apesar de as autorizações para o estudo não os contemplarem.

Por outro lado, a autorização estava restrita à cidade de Brasília, mas o estudo foi feito no estado do Amazonas, e depois exportado sem autorização para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

E mais: a identidade dos membros do Comitê Independente que deveria fiscalizar a investigação não foi fornecida pelos pesquisadores à CONEP, sendo desconhecida. A CONEP também afirma não haver nem a certeza de que esse comitê realmente tenha existido.

Flagrantes inconsistências metodológicas e total negligência com a vida humana podem nos levar a pensar que o experimento com proxalutamida foi um caso isolado de desapego pela ciência. Mas não. O fato contém as impressões digitais do bolsonarismo.

Gabinete paralelo

O responsável pelo estudo é o endocrinologista Flávio Cadegiani, acusado junto com Jair Bolsonaro de crimes contra a humanidade pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

Cadegiani é denunciado como um dos membros do chamado “gabinete paralelo” do Ministério da Saúde, grupo de médicos e charlatões próximos a Bolsonaro encarregados de promover o “tratamento precoce” com cloroquina, ivermectina e outras substâncias comprovadamente ineficazes contra o vírus, e de dar suporte teórico ao ataque às medidas de distanciamento social e ao uso de máscaras.

Curiosamente, o estudo principal, realizado nos hospitais da rede privada Samel no estado do Amazonas, foi patrocinado pela enigmática empresa norte-americana Applied Biology, especializada em tratamentos para calvície, da qual Cadegiani é diretor clínico. A empresa também é sócia da Kintor Pharmaceuticals, empresa chinesa detentora da patente da proxalutamida.

De acordo com a denúncia encaminhada ao Ministério Público, a única pessoa que assina os relatórios do suposto Comitê Independente é integrante do grupo Applied Biology, o que representa um claro conflito de interesses.

Outro dos responsáveis pelo estudo é o médico bolsonarista Ricardo Ariel Zimerman, um dos mais notórios defensores da cloroquina nas redes sociais, idealizador de coquetéis de remédios sem eficácia que integravam o “kit covid” que o governo federal enviava aos estados.

Zimerman coordenou com Cadegiani os estudos em hospitais do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, cujos resultados são desconhecidos pela CONEP.

Em agosto, Cadegiani escreveu em seu Twitter que “determinados tipos de deficiências institucionais não podem impedir o andamento de uma pesquisa estritamente ética e até moralmente obrigatória, tendo em vista os seus resultados”.

Após as denúncias, a Agência de Vigilância Sanitária suspendeu a importação de proxalutamida em setembro. O Ministério Público Federal abriu inquérito civil sobre o experimento clandestino de Porto Alegre.

Negacionistas

 “Esses fatos estão relacionados à negação da ciência, que tem dois caminhos: pode ser feita abertamente, quando as pessoas se negam a ser vacinadas e coisas desse tipo (algo bastante visto no Brasil nos últimos tempos), e também quando fazem de conta que estão fazendo ciência”, diz Venâncio.

E acrescenta: “Neste caso dá a sensação de que estavam era aplicando um tratamento disfarçado de pesquisa cientifica”.

Matéria publicada pela edição brasileira do El País relata outro caso em que Cadegiani prescreveu doses inéditas de proxalutamida sem nenhuma autorização.

Esses casos se somam às gravíssimas denúncias reveladas pela CPI contra a operadora de saúde Prevent Senior, acusada de falsificar atestados de óbito para ocultar mortes por Covid-19 enquanto realizava um estudo para comprovar a eficácia da cloroquina sem o consentimento dos familiares do paciente, obrigando os próprios médicos da operadora de saúde a prescrevê-la.

A justiça do Brasil ainda não deu um veredicto sobre esses experimentos criminosos. Mas, no desgastado campo da ética, o veredicto é claro: o presidente e seus aliados não apenas negaram e atacaram a ciência, como também a esvaziaram e a manipularam a serviço de seu projeto político e de seus mesquinhos interesses.

São os mercadores da morte.


(Publicado no jornal uruguaio Brecha , em 22 de outubro de 2021. Convênio BrechaRel UITA. Os intertítulos são da Rel-UITA).