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Cumplicidades europeias no desmatamento do Brasil

Uma máquina de destruição, tendo a soja
e o gado como motores

No momento em que uma nova ação internacional é movida contra o presidente do Brasil por crimes contra a humanidade devido à devastação que sua política de desmatamento está causando na Amazônia, é lançado um relatório que destaca a responsabilidade de empresas e bancos ocidentais nessas práticas.

Daniel Gatti


Ilustração: Boligan | Carton Club

O documento, da Rede Europeia de Observatórios Multinacionais (ENCO, por sua sigla em Inglês), destaca a dependência da exportação de matérias-primas como “a principal causa do nível sem precedentes de desmatamento e exploração da natureza nos dois ecossistemas mais ricos do Brasil: a Amazônia e o Cerrado”.

“Numerosos interesses econômicos ameaçam vastos territórios desses ecossistemas: o avanço do agronegócio baseado na pecuária, as grandes monoculturas de soja, a mineração e as atividades florestais ligadas às indústrias de matérias-primas”, afirma.

Tanto a Amazônia quanto o Cerrado se tornaram palcos de disputas não só entre empresas, mas entre elas e as populações locais.

Para a ENCO ambas as regiões não só são extremamente ricas em flora e fauna e em recursos hídricos, como também são o habitat dos povos indígenas, quilombolas e pequenos agricultores” que durante séculos permitiram que a economia local coexistisse com a proteção dos recursos naturais”.

O governo Bolsonaro, destaca o documento, sempre jogou a favor das corporações, que nos últimos anos começaram uma estratégia de conquista desses territórios acompanhada por um desmantelamento de legislações e das organizações ambientais, e por ataques sistemáticos às populações locais para expulsá-las de seus terras.

Os incêndios que, e 2019, arrasaram com a floresta amazônica como nunca antes, foram causados provavelmente por agentes de empresas que já operam ou pretendem operar lá.

Financiando a destruição

O relatório destaca como uma boa parte dessas empresas conta, em maior ou menor grau, com o apoio financeiro de bancos ocidentais, principalmente europeus.

Um exemplo citado no relatório: o do Banco Santander, espanhol, e que em 2016 foi multado no Brasil em 15 milhões de dólares “por ter apoiado financeiramente agriculturas em áreas desmatadas ilegalmente”.

Cinco grandes corporações agrícolas, entre elas as norte-americanas Cargill e Bunge, foram condenadas a pagar 29 milhões de dólares depois que uma investigação do Ibama revelou terem plantado cereais em áreas onde a agricultura está proibida.

Outros casos: os de mineração, transporte, distribuição de energia. Empresas transnacionais europeias desses setores, como as mineradoras Imerys, da França, e Norsk Hydro, da Noruega, têm sido repetidamente acusadas de “gerar impactos negativos” no estado do Pará, tanto em termos de meio ambiente quanto de respeito aos direitos das comunidades locais.

Ouro verde

“De todos os produtos de base que apresentam risco ambiental, a soja é o mais comercializado no mercado internacional”, indica o relatório.

Em 25 anos, a área destinada à soja no Brasil cresceu 400 por cento e hoje o país está, junto com os outros três estados-membros do Mercosul, Argentina, Paraguai e Uruguai, entre os principais produtores mundiais de soja.

Concentrada inicialmente na região sul do território, a soja posteriormente se expandiu para outras regiões, no início menos favoráveis ao seu cultivo.

Nacionais e estrangeiras

Os quatro principais destinos da soja brasileira produzida nas áreas desmatadas do Brasil são: Países Baixos, Espanha, França e Alemanha, nesta ordem. Mais longe aparecem a China e os Estados Unidos.

“Estudos recentes revelam que nos últimos anos chegaram ao mercado europeu cerca de dois milhões de toneladas de soja plantada ilegalmente por ano, das quais 500 mil toneladas foram produzidas na região amazônica”, destaca o documento.

Cinco grandes corporações, todas estrangeiras, dominam a cadeia brasileira de soja: ADM, Bunge, Cargill, Louis Dreyfus e COFCO.

Com relação ao setor das carnes, tanto bovinas quanto avícolas, são as transnacionais brasileiras que controlam o negócio da produção: JBS, Marfrig, BRF, Minerva.

Entre os acionistas dessas corporações encontram-se grandes investidores globais, como as transnacionais financeiras Morgan Stanley, Black Rock e Vanguard, os bancos BNP-Paribas, Santander, Deutsche Bank, HSBC, a rede de supermercados Carrefour, e a transnacional de laticínios Nestlé.

Todas estas empresas, nativas e estrangeiras, convergem na exploração de um negócio plenamente ciente das condições de ilegalidade em que é gerado, como foi denunciado, no ano passado, pela ONG Global Witness.

A ONG lamentou a falta, na Europa, de leis que impeçam que essas empresas façam como se não fosse com elas.

“Bancos, investidores, agências avaliadoras de risco, importadores e supermercados não têm a obrigação de checar se há risco de desmatamento antes de fazerem negócios com empresas do setor de carnes” e podem, assim, se fazerem de desintendidos.

Tudo conectado

O toque final da cumplicidade ocidental com a devastação dessas áreas do território brasileiro: o financiamento de empresas imobiliárias que compram, vendem, alugam e/ou administram terras agrícolas.

No Cerrado, diz a ENCO, “grandes reservas indígenas que oficialmente pertencem ao Estado foram privatizadas ilegalmente”, desencadeando uma dinâmica que “geralmente passa pela expulsão violenta de seus habitantes, seguida de grandes queimadas e/ou desmatamentos”.

As empresas imobiliárias contam com o apoio financeiro de um fundo de investimento norte-americano denominado TIAA, que por sua vez é alimentado por fundos de pensão europeus.

De acordo com o site fundspeople.com, o TIAA, criado em 1918 para "oferecer soluções de poupança aos professores dos Estados Unidos", estava entre as principais fontes de inspiração para os chilenos que projetaram os Fundos Privados de Aposentadoria e Pensão, ou AFJPs, criando um dos sistemas de previdência mais usurpadores do mundo.

No Brasil, onde o TIAA administra ativos de cerca de 2 bilhões de dólares, financia a maioria das empresas estrangeiras que possuem terras agrícolas e “criou uma rede complexa para comprar e investir fora das restrições legais impostas pelas leis nacionais sobre a propriedade imobiliária, no caso de pessoas estrangeiras”.

“Em meio a este panorama, conclui ENCO, a responsabilidade das empresas ou das instituições financeiras europeias tende a ser invisibilizada. Mas não desaparecerá de forma alguma”.