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Primeira decisão favorável para um trabalhador contaminado por agrotóxicos
Outra história, talvez
Com menos de 50 anos, Julio de los Santos está fisicamente incapaz, respira com auxílio mecânico e para sobreviver precisa de uma enorme quantidade de medicamentos e de ir a um posto de saúde diariamente para receber atendimento. Tudo isso devido à sua exposição aos agrotóxicos durante os 384 dias em que trabalhou para a empresa Arrozal 33, sendo sugado ao máximo.
Daniel Gatti
Ilustração: Allan McDonald
A única coisa “positiva” em tudo isso é o fato de os tribunais darem a razão ao trabalhador, indo contra a empresa. Por ser essa a primeira sentença no Uruguai favorável ao trabalhador rural por envenenamento com agrotóxicos, abre um precedência para a jurisprudência.
A decisão da juíza trabalhista Elena Salaberry, divulgada na semana passada, é clara: “A exposição a fatores poluentes de natureza agroquímica ou biológica durante o tempo em que o ator trabalhou na Arrozal 33, devido ao descumprimento das normas de segurança e prevenção, configurou grave culpa que merece punição legal”, pontua a sentença.
A empresa foi condenada a indenizar De los Santos por "danos morais", "danos emergentes" e "lucros cessantes". Ou seja, devido ao “grave padecimento espiritual e anímico” derivado do seu estado de saúde “irreversível e degenerativo”, pelos gastos com medicamentos e tratamentos que deverá enfrentar e pelos rendimentos que poderia ter recebido caso tivesse continuado trabalhando até sua aposentadoria.
Se a decisão for definitiva, a Arrozal 33 terá que pagar, com juros e atualização, cerca de 8 milhões de pesos, aproximadamente 186 mil dólares, disse o advogado do trabalhador, Dr. Santiago Mirande, para A Rel. "Isso não vai restaurar a saúde de Júlio, mas vai permitir que ele viva mais dignamente com sua família, junto com suas filhas”.
A empresa tem prazo para apelar até terça-feira, dia 28. Se o fizer, e seus advogados começarem com dilatação, o Dr. Mirande se dispõe a abrir um processo penal e paralelamente, também cível, esgotando todas as instâncias, chegando se for necessário à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O Dr. Mirande ressalta que nunca houve uma sentença com essas características no Uruguai, em casos de trabalhadores por contaminação com agrotóxicos.
“Esse é um caso paradigmático de todos os pontos de vista: social, ético, jurídico”, diz ele.
Social porque foi demonstrado que existem setores no país, como a indústria do arroz, que funcionam como zonas fechadas, violando todas as normas trabalhistas, ambientais e sanitárias; judicial, porque esta sentença poderia possibilitar julgamentos semelhantes, que estão parados; e ético, "porque marca o que está certo e o que está errado", e o que está errado é claramente o modelo produtivo.
Vários de seus colegas estavam esperando para ver o que aconteceria com Julio no tribunal, para poderem também fazer suas próprias denúncias contra a Arrozal 33.
“Do processo percebe-se que já houve denúncias antes, mas algumas terminaram apenas em multas e outras foram arquivadas. Recebemos informalmente dados de antigos e atuais trabalhadores da Arrozal 33 que estão passando pela mesma situação. Recebi fotos que mostram o estado atual de um trabalhador. Por enquanto eles ainda não entraram com nenhuma denúncia”, diz o advogado.
O Dr. Mirande espera que “a coragem e a dignidade” do seu cliente sirvam de exemplo e que outros se atrevam a desafiar uma empresa que se considera dona da vida e da morte dos seus trabalhadores.
Mas os feudos não são uma besteira.
“Todas as provas que foram apresentadas neste expediente mostram que existe um feudo do arroz como poucas pessoas imaginam”, afirma o Dr. Mirande.
“Há depoimentos de médicos, de trabalhadores e de ex-trabalhadores, relatórios feitos por órgãos do Estado como o Banco de Previdência Social e o Banco de Seguros do Estado, perícias da Faculdade de Medicina que comprovam que a Arrozal 33 infringe a legislação vigente, dita suas próprias normas e com eficácia impede as vítimas de reclamarem ”.
Há algum tempo, Richard Olivera, dirigente do Sindicato Único dos Trabalhadores do Arroz e Afins (SUTAA) na Arrozal 33, lembrou -em declarações ao semanário Brecha - que houve uma greve na empresa que contou com a adesão de 70% dos 250 trabalhadores.
Depois de "intervenções" feitas pela direção - leia-se campanhas de intimidação e pressão - apenas 10% continuaram com a greve.
Mais dados para completar o panorama “feudal”: 150 trabalhadores, 60 por cento da mão-de-obra da empresa, vivem na própria Arrozal 33, que por sua vez é o único empregador em uma cidade do departamento de Treinta y Tres, na fronteira com o Brasil, dedicada inteiramente ao cultivo, industrialização e exportação de arroz.
A empresa tem um forte histórico antissindical. Em 2017, um acampamento de trabalhadores em conflito foi incendiado por “desconhecidos”, e nesse mesmo ano um funcionário próximo ao sindicato foi esfaqueado por outro, que era alinhado à direção, e apesar disso foi despedido.
Em janeiro passado, A Rel pôde falar com De los Santos e cobrir amplamente seu caso. Já era dependente de respirador mecânico e precisava tomar vários medicamentos por dia, além de precisar se deslocar a um centro médico várias vezes por semana para receber tratamento. Ele sofre de diabetes, hipertensão e seu fígado também está afetado.
O trabalhador entrou na Arrozal 33 em 2014. Colocaram-no para consertar máquinas, como os pulverizadores manuais que borrifam as lavouras, e entre suas tarefas estava a de cortar com maçarico, em oficinas sem ventilação, tanques de 200 litros que, furados, soltavam fumaça carregada de resíduos de agrotóxicos acumulados no fundo do recipiente.
Os tanques eram então reaproveitados para extrair água dos canais e irrigar os arrozais, completando a cadeia de contaminação.
De los Santos realizava essas tarefas com uma proteção totalmente ineficaz, voltando para casa encharcado com os líquidos dos tanques que cortava e voltava a soldar, porque não tinha permissão nem sequer para trocar de roupa durante o expediente.
"Havia muita coisa naqueles tanques: glifosato e outras coisas mais", disse ele à Rel. Relatou também que as pulverizações eram frequentemente feitas "por cima das cabeças" dos trabalhadores e a uma distância muito curta das casas e da escola do vilarejo, desmentindo a empresa, que no julgamento afirmou respeitar as normas exigidas por lei.
Em 2016, o trabalhador apresentou os primeiros sintomas (dificuldades respiratórias, dores no peito e nas costas, náuseas, vômitos, desmaios) de doenças que, algum tempo depois, as perícias ordenadas pela justiça classificaram como decorrentes do seu trabalho na empresa.
De los Santos ainda morava no próprio estabelecimento. A Instituição Nacional de Direitos Humanos e a Defensoria do Povo tiveram que intervir para o trabalhador obter moradia distante das terras pulverizadas.
A empresa sempre lhe negou a assistência de que precisava e descontava da sua folha de pagamento os dias não trabalhados, cada vez mais numerosos.
Em 2017, o Banco de Previdência Social o diagnosticou com perda de 30 por cento da capacidade pulmonar, o que já o impedia de trabalhar. Dois anos depois, seu grau de incapacidade para o trabalho subiu para 50 por cento e hoje é de 87,98.
De los Santos ajuizou ação contra a empresa no final de 2017. A Arrozal 33 disse que as doenças que lhe foram diagnosticadas decorriam de seu vício ao tabaco e de seu trabalho anterior como soldador.
O processo judicial foi lento. Incluía a substituição de uma juíza que acusara o trabalhador de mentiroso e que tornara próprios todos os argumentos dos empresários.
A juíza que a substituiu, por outro lado, ordenou perícias independentes que não deixassem dúvidas sobre a origem das doenças do De los Santos.
Em 2020, o Departamento de Saúde Ocupacional do Hospital de Clínicas, subordinado à Faculdade de Medicina, único órgão público que estuda esse tipo de patologia, determinou que Júlio sofria de “pneumonite por hipersensibilidade a substâncias”, incluída “na lista das doenças ocupacionais do país”, devido à sua exposição, “durante o seu trabalho", a "possíveis agentes causais como pó de arroz, tintas e substâncias químicas".
Um estudo especializado de 2014 da Universidade da República determinou que até então pelo menos 10% dos trabalhadores arrozeiros da bacia da Laguna Merín, onde fica a fazenda Arrozal 33, de 8.200 hectares, sofreram intoxicações por agrotóxicos.
A pulverização de praguicidas e de outros agrotóxicos em cima dos trabalhadores, os elementos de proteção insuficientes e inadequados proporcionados pela empresa, a nula ou escassa instrução recebida para o manuseio dos produtos, a ausência de rotulagem das embalagens, a sua disposição incorreta nos hectares estão entre os fatores que explicam o envenenamento por pesticidas e outros agroquímicos no ambiente de trabalho.
Laura Taran, professora do Centro de Informação e Assessoramento Toxicológico do Departamento de Toxicologia da Faculdade de Medicina, um organismo que regularmente realiza estudos sobre o assunto, disse ao semanário Brecha que é responsabilidade das empresas - nunca do trabalhador – garantir todos esses aspectos.
A professora também destacou a necessidade de formar médicos para tratar essas patologias em áreas rurais com uma abordagem de medicina preventiva e que as empresas agropecuárias ofereçam um departamento de saúde ocupacional à altura da situação.
Na última negociação coletiva, os trabalhadores arrozeiros apresentaram às empresas uma proposta nesse sentido. Eles calcularam seu custo em cerca de 400 mil pesos, pouco mais de 9.300 dólares, um valor irrisório para um setor em expansão que em 2020 teve bons resultados em todas as áreas, exportando cerca de 455 milhões de dólares. Mas as empresas se recusaram a financiar a proposta.
Entre os pontos positivos, o Dr. Mirande destaca que a decisão coloca “a comunidade” diante da possibilidade de repensar coletivamente todas essas questões, começando pelo “modelo produtivo”.
“É um modelo que, a partir do uso de agroquímicos, contamina humanos, animais, solo, rios, córregos e que se espalha até os alimentos que consumimos. A ciência está provando isso cada vez com mais precisão”, diz o advogado que se dedicou ao estudo do impacto dos agrotóxicos e fez parte do coletivo Ta, um espaço universitário interdisciplinar sobre transgênicos e agroecologia.
O caso de Julio de los Santos, pensa ele, é também uma “oportunidade para as empresas buscarem melhorar a forma de produzir e de cuidar da saúde de seus trabalhadores e do meio ambiente em que atuam”.
O Dr. Mirande acredita que quem diz que é impossível ir em direção a algo diferente deve ser respondido que há exemplos concretos que provam o contrário. “Aqui ao lado, na Argentina, existem grandes áreas de produção agroecológica. É uma questão para se considerar”. Mas é necessário mudar as cabeças e, talvez, até o sistema.