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Chico Buarque e outros intelectuais entregam à ONU um forte manifesto contra Bolsonaro

O Brasil do Bolsonaro é “uma câmara de gás a céu aberto”

Bolsonaro é acusado de genocídio pela sua má gestão da pandemia e avisam que as novas cepas são um perigo para todos os países que dividem fronteira com o gigante da América do Sul. Bolsonaro continua questionando as vacinas.
Ilustração: Allan McDonald

Chico Buarque e o teólogo Leonardo Boff denunciaram em uma carta dirigida à ONU e ao Tribunal Penal Internacional que o Brasil, devastado pelo coronavírus, se converteu em uma “câmara de gás a céu aberto”, que condena a população ao “extermínio”.

Além de comparar o governo de Jair Bolsonaro com o regime de Adolf Hitler, o documento assinala que o país avança em direção a uma catástrofe quase bíblica, como demonstram as últimas estatísticas.

O presidente é um “homem sem humanidade, nega a ciência, sendo o ódio ao outro a razão de ser de seu exercício pelo poder”. Este “monstruoso governo genocida deixou de ser uma ameaça para o Brasil para se tornar uma ameaça global (...) para toda a civilização”.

O Brasil é o segundo país do mundo em mortos pela Covid-19, com 265 mil vítimas, e soma 10,9 milhões de infectados, situando o país no terceiro posto do ranking de contagiados, liderado pelos Estados Unidos.

De acordo com um estudo inconclusivo da Organização Mundial da Saúde, o país poderia saltar para o primeiro lugar no ranking de pessoas falecidas, ao terminar 2021.

Neste sábado (6 de março), o Brasil superou a marca dos 10 mil mortos em uma só semana, a cifra mais alta desde o início da pandemia. De acordo com alguns especialistas no assunto, são esperadas cifras piores nos próximos dias, diante da escassez de vacinas agravada pelo desinteresse oficial em comprá-las.

O estado de São Paulo, governado pelo conservador João Dória, e com uma população parecida em números à da Argentina, entrou sábado na “fase vermelha” do isolamento social, a mais severa, com o fim de ganhar a “guerra” contra a doença.

A cidade de São Paulo registra 80,9 por cento de ocupação nas salas de terapia intensiva. No Rio de Janeiro, cuja prefeitura decretou um isolamento intensificado, 90,3 por cento dos leitos de terapia intensiva estão ocupados.

Para piorar a situação, o “lockdown” leve decretado pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, de direita, sofre sabotagem do governador do estado do Rio de Janeiro, Claudio Castro, um incondicional do presidente.

Vizinhos em perigo

Bolsonaro dedicou a semana passada para questionar a vacina, atacar o isolamento social e encabeçar atos com dezenas de pessoas sem máscaras.

Neste sábado, foi até a Base Aérea de Brasília, onde, outra vez sem usar máscara, pronunciou um breve discurso diante de um grupo de funcionários, antes de embarcar com destino a Israel.

A disseminação da cepa amazônica, a variante P1, chegou a boa parte do território nacional brasileiro, em menos de dois meses, colapsando os hospitais de vários estados, inclusive os localizados na fronteira, “colocando os países vizinhos em risco”, diz o documento.

Dez países da América do Sul fazem limite com o Brasil ao longo dos 17 mil quilômetros de uma fronteira bastante porosa.

A variante amazônica já é altamente contagiosa. Estima-se que as próximas cepas surgidas dela poderão ter uma transmissibilidade superior e ser mais resistentes às vacinas.

De acordo com pesquisadores, como Atila Iamarino, a mutação da P1 se vê fortalecida pela política “equivocada do governo”, que proibiu os controles de trânsito entre os estados, e pela falta de programas intensivos de testagem.

A imprensa descobriu mais de seis milhões de exames ocultos em um depósito próximo ao Aeroporto Internacional de São Paulo, no final do ano passado.

Naquele então, apenas cinco milhões de brasileiros tinham sido submetidos a tais exames.

O general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, reconheceu a veracidade da informação, prometeu doar ao Haiti parte dos testes e enviar o restante aos estados brasileiros.

Um matador de meia tigela

Bolsonaro adora encher a boca com discursos nacionalistas, repletos de menções a uma soberania garantida pela presença militar nas fronteiras terrestres e marítimas.

Um argumento utilizado, junto ao da segurança nacional, para justificar o aumento disparado nas verbas destinadas às Forças Armadas, prejudicando as verbas destinadas para a saúde.

Na nova estratégia de Defesa, as hipóteses de conflito se concentram nas fronteiras, priorizando as amazônicas, onde foram realizados exercícios militares com um aumento da sua frequência.

Um dos últimos ensaios militares coincidiu com a chegada ao país do então secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo, nos dias finais da administração do presidente Donald Trump.

Além de apoiar a reeleição de Trump, Bolsonaro entrou numa campanha contra o candidato democrata Joe Biden, a quem chegou a ameaçar de lhe responder “com pólvora” se as tropas dos Estados Unidos entrassem na Amazônia.

A crise da Covid contradisse essa retórica, expondo a olhos nus um déficit de soberania: o estado nacional se transformou num caos em parte do território brasileiro, principalmente na região da floresta amazônica.

Manaus, a cidade mais importante da Amazônia, foi a primeira capital devorada pela pandemia em meados de janeiro, quando dezenas de pessoas morreram por falta de oxigenação, apesar de que o ministro Pazuello foi informado sobre a carência de cilindros de oxigênio.

Diante disso, o governo dos Estados Unidos anunciou sua intenção de enviar equipamentos a Manaus. Lá chegaram vários caminhões com tubos de oxigênio doados pela Venezuela. Bolsonaro irritado, atacou o governo de Nicolás Maduro.

O fato é que enquanto continuar avançando a pandemia no Brasil, o país se torna cada vez mais vulnerável diante dos olhos do mundo, onde alguns governos temem a exportação de um super vírus.

Washington enviou um sinal, ou talvez uma advertência, por meio do infectologista Anthony Fauci, assessor do presidente Biden.

“O melhor é vacinar e que seja no maior número de pessoas, o mais rápido possível”, recomendou Fauci às autoridades brasileiras, com as quais, disse, gostaria de conversar sobre o assunto.

Nada indica que Bolsonaro esteja disposto a receber conselhos de Biden, e nem da OMS, que acaba de reiterar sua “preocupação” diante da situação brasileira.

Ignorante e criminoso

Muito pelo contrário, o presidente brasileiro repetiu nos últimos dias sua aposta no consumo da hidroxicloroquina, um medicamento para a malária sem eficácia comprovada contra o coronavírus, e sua expectativa em um “spray milagroso” utilizado em Israel para o tratamento de doentes com câncer.

O spray nasal EXDO-CD24 foi aplicado a apenas 30 pacientes infectados com o SARS CoV-2, dos quais 29 se curaram imediatamente, garantiu o presidente, enviando a Israel uma delegação encabeçada pelo chanceler Ernesto Araújo.

Em contraste com essa aposta milagrosa, a realidade indica que até o momento foram vacinados só 8,1 milhões de brasileiros, pouco mais de 4 por cento da população.

O governo assinou um só contrato para comprar imunizantes, com o laboratório britânico AstraZeneca.

Grande parte das vacinas aplicadas é a Coronavac, do laboratório chinês Sinovac, compradas por São Paulo.


Darío Pignotti
(Artigo da Página 12 de Buenos Aires. Os intertítulos são da Rel).