Mais do que nunca inevitável, por estarmos em tempos de distanciamentos físicos e animosidades exacerbadas, produto muitas vezes da angústia ou da depressão causadas na humanidade, por causa da pandemia gerada pela Covid-19.
Durante este – para usar um eufemismo – ignominioso 2020, foi preciso desaprender e voltar a aprender, tivemos que reinventar formas de compartilhar e de trabalhar. Fazer uso das ferramentas que tínhamos à mão, para que esse mundo, virado de cabeça pra baixo, surgido assim de um dia para o outro, não nos expulsasse dele, como se não significássemos nada.
Inicialmente, sentimos uma espécie de paralisia, entramos no piloto automático, esperando para ver se esta situação passava, se as viagens voltariam a ser permitidas, e se haveria uma solução em curto prazo para o novo coronavírus. Mas, rapidamente, percebemos que não.
E então, tivemos que sacudir a letargia, arregaçar as mangas e ir mãos à obra.
Conscientes, ou inconscientes talvez, de que o desafio era enorme, começamos a dar pequenos passos, primeiro lançamos a proposta da Ronda Viva, onde as filiadas contavam o que as suas organizações vinham fazendo para enfrentar a pandemia. Só que depois, essas mesmas participantes quiseram continuar fazendo coisas juntas, e assim surgiu o projeto Clamu te visita!, que confesso, jamais imaginamos o sucesso alcançado.
Fomos conhecendo, por meio das reuniões por zoom, ou de áudios e vídeos gravados, as companheiras e os companheiros, que antes só víamos em fotos. E essa distância física, imposta pela crise sanitária, foi diminuindo à medida que os encontros aconteciam.
Muitos deixaram de ser a secretária geral de, o presidente ou a presidenta de, a tesoureira, o assessor ou o secretário.
Em todos esses meses, desde que embarcamos nessa odisseia de continuar a luta através da Clamu, essas pessoas passaram a ser simplesmente a Rose, Laura, Ulises, Delmi, Emmy, Carmen, Daniela, Gabriel, Geni, Mónica, Gisele, Eduardo, Dania, Mariazinha, Marta, Érica, Adela, Felicia e tantos e tantas mais, aos que peço perdão por não mencioná-los, não porque não sejam lembrados, mas porque não seria possível nesse pequeno espaço.
Durante as cinco quartas-feiras de setembro, presentes no calendário deste ano, éramos umas 70 a 80 pessoas reunidas, entre dirigentes, sindicalistas de base, funcionários da secretaria regional e também da secretaria geral.
Esse espaço não só nos mostrou quais ações os sindicatos tomaram para empoderar as mulheres, como também mostrou o lado mais humano das participantes.
Histórias de vida, de luta, de sacrifício, mas principalmente de muito trabalho, se conjugaram e cobraram vida com Clamu te visita!. A incorporação na agenda dos problemas e desafios da comunidade LGBTI foi outro destacável aspecto nesse processo.
Em cada etapa deste trabalho, vi como foi crescendo a sororidade entre as companheiras, e olhe que algumas nem sabiam muito bem o que essa palavra significava. Elas mesmas não percebiam que a estavam redefinindo, apoderando-se dela, para multiplicá-la.
E claro, não podíamos ficar cada uma fazendo o seu trabalho separadamente. Novembro estava chegando e com ele a comemoração do Dia Internacional de Luta Contra a Violência à Mulher, e essa era uma ocasião propícia para desenvolver mais ações, desta vez focadas na prevenção.
Da Colômbia surge a ideia de elaborar uma campanha unificada entre todas as organizações da Regional, que quisessem participar e, imediatamente, começaram as gestões para idear e planificar como faríamos isso.
Resultado: uma campanha regional durante os 16 dias de ativismo promovido pelas Nações Unidas, desde 1991, visando – mediante diferentes mobilizações – visibilizar a situação de violência sofrida por milhares de mulheres e crianças do mundo inteiro.
Como os 16 dias começavam em 25 de novembro, dia contra a violência de gênero, e iam até o dia 10 de dezembro, dia dos direitos humanos, esse ponto também entrou em nossa campanha.
O trabalho da Regional Latino-Americana esteve, desde sempre, atravessado pela defesa e promoção dos direitos humanos, como a gênese dos demais direitos.
O lema da campanha foi levado a votação. As participantes elaboraram propostas, posteriormente votadas de forma horizontal.
Dessa votação, elege-se o lema “Eu tenho direito. Quero igualdade e respeito”, proposta feita pelas companheiras da Contratuh do Brasil.
Uma vez com o slogan escolhido, começamos o périplo do design do logo, e demais materiais escritos e gráficos, para que todas e todos tivessem como mandar imprimir as peças que pudessem, ou que mais gostassem, para dar visibilidade à campanha.
Foram elaboradas camisetas, cartazes, outdoors, bonés, lencinhos, máscaras, sacolas. As redes sociais e os murais sindicais se inundaram com esse material, criado por todos e por todas.
Houve oficinas virtuais abordando a questão da violência doméstica, da violência no trabalho e da discriminação de gênero, contando com uma ampla participação.
Foi emocionante ver o compromisso e a seriedade com que as filiadas abraçaram esta campanha e a levaram adiante, não sem dificuldades, claro. Sabemos que são assuntos até bem pouco tempo tratados exclusivamente em âmbitos privados.
Desta intensa troca de experiências pudemos ver como a violência não conhece classe sociais, nem escolaridade, nem cor da pele. A violência contra as mulheres é o produto de uma sociedade estruturalmente patriarcal e machista, que vê as mulheres como seres inferiores e, por muitas vezes, incapazes.
Um machismo que, como bem disse Rita Segato, é fruto de uma ordem patriarcal, muitas vezes encarnada pelas próprias mulheres.
Durante esse tempo, aprendemos a desaprender, principalmente condutas de discriminação e de exclusão; porque para transformar a realidade não basta oferecer oficinas e cursos, pois são apenas a base para podermos exigir, dos governos e dos governantes, políticas públicas dirigidas à prevenção da violência e à proteção das mulheres vítimas dessa situação.
Aprendemos também que a violência doméstica afeta de forma direta os nossos ambientes de trabalho e, portanto, este assunto precisa formar parte da agenda de nossos sindicatos.
Aprendemos que a violência no trabalho não é dirigida exclusivamente às mulheres, entretanto são elas as que mais a sofrem. Por isso, gerou-se o compromisso de trabalhar para fazer com que a Convenção 190 da OIT sobre violência e assédio no mundo do trabalho seja ratificada e aplicada em todos os países da região.
Parece uma tarefa difícil, não é mesmo? Entretanto, a história do movimento operário nos demonstra que com vontade, persistência e trabalho, é possível fazer o impossível virar realidade. E, quando nessa luta incluirmos as mulheres, tudo isso que parece impossível, se transformará em propósitos plausíveis.
O futuro chega lento, lento, mas chega.
Saúde, companheiras! Saúde, companheiros! Até a vitória, sempre!