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Além do Covid-19

Pânico social em tempos de desordem global

Ninguém pode negar que o pânico imperante nas sociedades urbanas tem sido estimulado pela superexposição da epidemia de coronavírus nos grandes meios de comunicação do planeta.

No continente americano, enquanto 3 milhões de pessoas foram infectadas pela dengue em 2019, seis vezes mais do que em 2018, causando mais de 1.500 mortes, toda a informação está centrada no coronavírus.

Este recorte informativo soa como operação midiática, com consequências desastrosas em nossas sociedades.

No entanto, nem todo o pânico e medo que estão se espalhando nesse momento vêm da mídia ou dos governos.

Boa parte deles são temores entranhados nos setores populares, entre as e os trabalhadores formais e informais, muitas vezes entre pessoas com formação técnica e profissional, bem informados e razoáveis.

Creio que esses medos não são irracionais, embora muitas vezes levem a comportamentos erráticos, por responderem a uma experiência determinada da população nas últimas décadas.

Estou tentando expor algumas dessas experiências coletivas que, acho, podem nos ajudar a entender melhor aquilo que é chocante à primeira vista.

O primeiro aspecto é que estamos no neoliberalismo há três décadas, o que se traduz no desmantelamento do tipo de sociedade que conhecíamos e que causa desconfiança nas instituições e governantes, sejam da cor que forem.

Com isso, não quero dizer que todos os governos sejam iguais, mas que parcelas crescentes da população sentem que são incapazes de resolver seus problemas.

Se eu tivesse que fazer um gráfico, diria que a tendência à abstenção nas eleições e à forte volatilidade nas opções políticas, na maioria dos países, é um sinal dessa desconfiança.

No Chile, por exemplo, mais da metade não vai às urnas, não porque não se importam, mas porque votaram na direita e depois na esquerda, e nada mudou.

Outro cenário

A segunda é que estamos vivendo um período de profundas mudanças sistêmicas, em escala global e regional, com o declínio de uma superpotência como os Estados Unidos e a ascensão de uma nação como a China, que era marginal no cenário global.

As pessoas que nasceram depois de 1945, ou seja, a grande maioria da humanidade, conhecem o predomínio indiscutível dos Estados Unidos, que guiavam o mundo mas também o oprimiam.

As rápidas mudanças que se acumularam desde 2008, e que marcam a ascensão da China como uma nova hegemonia planetária, causam natural perplexidade e incerteza, independentemente das opiniões e sentimentos de cada um em relação às duas potências.

O terceiro ponto é o desmantelamento dos estados de bem-estar social, particularmente na Europa e em alguns países da América Latina.

Durante várias décadas, esses estados buscaram a integração dos trabalhadores, arbitrando assim os espaços de negociação entre empregadores e sindicatos.

Eles não só contribuíram para melhorar a vida cotidiana de grande parte da população, mas também na proteção e promoção de um aumento social contínuo.

Com a crise dos estados de bem-estar social e o triunfo do capital financeiro sobre o capital produtivo, estamos testemunhando a realocação das indústrias, que desembarcaram na Ásia por seus baixos salários e baixa sindicalização.

Foi o caminho que o capital encontrou para continuar acumulando lucros, deixando um rastro de pobreza, desenraizamento e frustração.

Leiloando a saúde

Os serviços de saúde se deterioraram, com cortes acentuados nos orçamentos com a desculpa de reduzir o déficit fiscal, além de uma crescente privatização dos serviços.

Com exceção de Cuba, todos os países latino-americanos apresentam sérios problemas estruturais no setor da saúde, com crescente aumento da precariedade do emprego e baixos salários.

A população migra para a saúde privada, claro, quem puder pagar por ela, ou para terapias alternativas, diante do acúmulo de fracassos do sistema público de saúde.

Todo inverno, a gripe comum transborda os centros de atendimento e ensina que o sistema não está em condições de atender toda a população.

Somente nos Estados Unidos, 380.000 pacientes morrem todos os anos em asilos de idosos que não cumprem os procedimentos básicos de controle de infecções. Esses asilos não são controlados pelo Estado (Viento Sur, 13 de março de 2020).

O acúmulo de desastres ambientais é o quarto aspecto que causa desassossego nas populações.

Episódios como o rompimento da barragem de Brumadinho, da mineradora Vale, no Brasil,, com um saldo de quase 300 mortos e desaparecidos, ou o colapso do abastecimento de água em bairros de grandes cidades, estão cobrindo nossa geografia de agressões ao meio ambiente e às pessoas.

Todo desastre ambiental é um desastre social, afetando principalmente os mais pobres que vivem de forma cada vez mais precária.

A exceção passa a ser rotina, com uma sucessão ininterrupta de incêndios e inundações, desde desabamentos por chuvas até secas persistentes.

Crise cultural e de alternativas

Em quinto lugar, o modelo neoliberal multiplicou a cultura do individualismo, sendo o consumismo o outro lado da moeda, com a consequente quebra do vínculo social comunitário.

Sem comunidades que as contenham ou estados-nação que as protejam, as camadas populares (indígenas, negras, mulheres, crianças e idosos pobres) buscam alternativas em religiões que prometem a salvação imediata das almas ou, na melhor das hipóteses, em organizações populares.

A crise ética das esquerdas está prejudicando a credibilidade e a capacidade de ação de muitos movimentos camponeses e operários. Apenas os movimentos das mulheres e de alguns povos originários permanecem como referências da resistência anticapitalista.

Finalmente, a globalização e os meios de comunicação nublam a compreensão, propagando uma cultura do imediatismo, sobrecarregando as populações com informações que não contribuem com ideias nem permitem entender o contexto global, regional e local.

Embora nos esforcemos para entender o que está acontecendo, muitos de nós temos enorme dificuldade em nos orientarmos em meio de tanta névoa, de tanta confusão. Seja aquela que surge da realidade do sistema ou a promovida pelos meios de comunicação.

Dos seis aspectos que abordei de forma sucinta, há dois que parecem centrais para compreender os pânicos que dominam nossas sociedades: a velocidade das mudanças e o fim da âncora comunitária.

Embora um enfoque no macro e o outro no micro, a combinação dos dois está nos deixando perplexos e sozinhos, desconcentrados e sem referências em um mundo que ameaça nos arrastar para abismos desconhecidos.