Povos indígenas
-O governo brasileiro está alinhado à agenda da ONU para 2015, com relação aos direitos dos povos indígenas?
-Na abertura do Fórum Permanente para Questões Indígenas da ONU, o vice-secretário geral da entidade afirmou que “garantir o bem-estar dos indígenas deve ser crucial na nova agenda global”, porém avaliamos não ser essa a linhaadotada pelo Estado brasileiro, com seus ataques sistemáticos e violentos aos direitos dos povos indígenas, ignorando totalmente a situação atual de vida das comunidades e lideranças.
Ficou claro neste Fórum que o processo em curso no Brasil vai justamente na contramão da diretriz defendida pela ONU.
-Você se refere ao Supremo Tribunal Federal?
-Exatamente. Porque as decisões recentes, tomadas pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, são o resultado de um processo que envolve os diferentes poderes do Estado brasileiro.
Processo esse cujosmaiores propulsores são exatamente os setores econômicos antagônicos e inimigos históricos dos povos indígenas, isto é, as mineradoras, os latifúndios, o agronegócio, as empreiteiras e todos esses grandes grupos econômicos.
Esses setores se fortaleceram muito nos últimos anos, por uma série de motivos, entre eles o financiamento privado e empresarial das campanhas eleitorais, garantindo uma maior presença no poder, em especial no Congresso Nacional.
-Governo e os latifúndios são as duas caras de uma mesma moeda?
-Uma mesma moeda que se chama “commodities”, já que o Brasil é dependente sobremaneira da exploração, produção e exportação de matérias primas, principalmente minerais e produtos agrícolas.
Isso favorece principalmente os latifúndios.
Por exemplo, a aprovação do Novo Código Florestal foi a primeira grande vítima desses setores. Hoje são os povos indígenas o grande alvo.
-E essa articulação poderosa atinge o Supremo Tribunal Federal (STF)?
-Exatamente. E como resultado, temos as últimas três decisões recentes, onde os ministros interpretaram que as terras Guyra Roka (MS), do povo GuaraniKaiowa; Porquinhos (MA), dos CanelaApanyekrá; e LimãoVerde (MS), dos Terena, não seriam terras indígenas.
São três decisões muito ruins e preocupantes, porque anulam atos administrativos do Poder Executivo, já em fase adiantada, pois já estavam com as portarias declaratórias.
E o que é muito ilustrativo é o caso da anulação da portaria declaratória da terra do povo Terena, LimãoVerde (MS),por já estar registrada em nome da União, e na posse pacífica e consolidada, portanto no pleno exercício do direito do PovoTerena ao usufruto permanente da terra.
-Mas, como o STF conseguiu reinterpretar o que já estava decidido?
-O STF usou de uma nova interpretação para o conceito de terra tradicionalmente ocupada, consignado no artigo 231 da Constituição Federal.
Essa nova interpretação é enormemente restritiva já no chamado “marco temporal”, por considerarque, para haver a posse da terra tradicional, eles deviam estar ocupando a área em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
-E no caso dos povos indígenas que não estivessem de posse de suas terras em 5 de outubro de 1988?
-Nesses casos, os povos indígenas deveriam comprovar o chamado esbulho renitente, ou seja, não estarem no local, não por vontade própria, mas por impossibilidade, porque caso tentassem retornar sofreriam violência.
Comprovado o esbulho, o direito àquelas terras permaneceria vigente.
-Isso não se cumpriu?
-Não, porque,nestes três últimos julgamentos,o STF utilizou uma reinterpretação muito restritiva do conceito de esbulho renitente.
O ministro Gilmar Mendes e o ministro Teori Zavascki estão dizendo que só se caracterizaria o renitente esbulho se os povos provassem estarem na época disputando a posse das suas terras.
Para isso o STF só dá duas opções válidas para essa disputa. Teriam que estar disputando a terra judicialmente, com uma ação judicial requerendo a posse, ou em conflito de fato.
Ou seja, disputando na flecha, na pedra, enfim, guerreando com os fazendeiros em 1988. Ora! Isso é totalmente avesso aos fatos e ao direito da época!
-Por quê?
-Porque até 5 de outubro de 1988 os povos indígenas eram tutelados, não eram considerados plenamente capazes. Portanto, eles não eram considerados aptos para o ingresso no Poder Judiciário.
Quem poderia fazer isto no lugar deles, seria o Estado, que nessa época estava formatado pela Ditadura Militar, e exatamente catapultava os processos de retirada e de expulsão dos povos de suas terras, para que os fazendeiros tomassem suas terras para si.
E eles também não podiam guerrear! Porque seriam dizimados! Fica assim evidente que essa interpretação anula qualquer possibilidade de que os povos alijados de suas terras possam recuperá-las.
-O que as três comunidades disseram?
-Não puderam dizer nada, porque nenhuma das três comunidades foi sequer ouvida em quaisquer das fases do processo judicial que resultou nessa decisão.
O poder judiciário, em muitos casos, desconhece o direito dos povos de se representarem, de serem sujeitos de direito, inclusive para se manifestarem nos processos judiciais.
O artigo 232 da Constituição é muito claro nesse sentido, onde é explícito o direito das comunidades de ingressarem nos julgamentos, na defesa dos seus interesses.
-Qual será o próximo passo?
-As comunidades, insatisfeitas com essas decisões da 2ª Turma, estão sendo assessoradas pelos advogados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Já foram apresentados recursos pedindo a anulação de todo o processo judicial, uma vez que as comunidades indígenas não foram ouvidas no processo, e esse é um direito que necessariamente devia ter sido respeitado.
-Mas, o governo homologou três novas áreas no Amazonas.
-Sim, é certo. Mas isso se deve ao fato de o Poder Executivo não querer se envolver nas demarcações mais conflituosas do país, onde está a maior demanda dos povos indígenas.
É por isso que o governo homologou três áreas no Amazonas, para não enfrentar nenhum dos processos que envolvem conflitos, como no caso de Mato Grosso do Sul e do extremo sul da Bahia.
-O que acontecerá com os povos indígenas, se essa direção não for desviada?
-Se houver realmente a consolidação desse processo antiindigenista, por meio das decisões do STF, e da aprovação da PEC 215, a consequência prática será exatamente um processo agudo de novas expulsões dos povos de seus territórios e uma consequente imigração forçada para as periferias urbanas ou para a beira das estradas.
-Em abril agora, o ministro Gilmar Mendes anulou o decreto da Presidenta que desapropriava terras para entregar ao Povo Tuxa de Rodelas na Bahia. Ou seja, mais do mesmo?
-Essa anulação é parte dessa articulação antiindigenista. A Presidenta da República tinha decretado, em março de 2014, a desapropriação de uma área para a instalação do Povo Tuxa de Rodelas, já que o território tradicional desse povo tinha sido alagado por uma hidrelétrica.
Gilmar Mendes anulou esse ato do Executivo, alegando que a lei para a aplicação desse decreto só poderia beneficiar comunidades agrícolas, cooperativas, e para produção, e que os povos indígenas não se enquadram no conceito de população beneficiada pelo ato.
Então, por um lado o STF diz que não existem mais terras tradicionais e por outro diz que o governo não pode desapropriar áreas para fins sociais e nelas instalar os povos indígenas.
Portanto, a consolidação dessas decisões deixa, como único espaço para os povos, o olho da rua, a beira das estradas, ou as periferias urbanas.
-Um genocídio planificado pelo Estado brasileiro?
-Não existem meras coincidências. Não é possível que essa articulação tão perfeita entre todos os âmbitos do Estado sejam meras coincidências.
Em minha avaliação, dá para caracterizar perfeitamente como um processo potencial de genocídio.
-Os povos indígenas alguma vez foram sujeitos de direito no Brasil?
-Com o lampejo da Constituição de 1988, muitos povos conseguiram conquistar sua condição de sujeitos de direito, e alguns inclusive suas terras ou parte delas ao menos.A questão é que esse processo, ainda incipiente, está ameaçado de extinção.
-Qual é a posição do Cimi?
-Para nós, o governo se tornou refém dos interesses político-econômicosdos setores já mencionados, absolutamente todos inimigos históricos dos povos indígenas.
Porém, há indicadores de que esse processo é articulado dentro dos espaços de poder público, ou seja, o governo não é só refém, mas também é ator no processo de ataque aos povos indígenas no país.
-Que importância tem a parceria do Cimicom a Rel-UITA?
-Para nós, a parceria com a Rel-UITA é fundamental, porque precisamos divulgar para o máximo de países e de organismos, buscando pressionar o governo brasileiro, e com isso contamos com a colaboração da Rel-UITA.
Estávamos inclusive comentando aqui na ONU com as lideranças presentes, da importância da colaboração de vocês para a divulgação internacional da nossa luta.