A mudança climática e o neoliberalismo
Desde o dia 28 de abril, o Estado brasileiro do Rio Grande do Sul atravessa a pior enchente de sua história. Mais de uma centena de mortos, cerca de 150 desaparecidos, quase 400 feridos, 70 mil refugiados e 180 mil evacuados, mais de 1,5 milhões de atingidos. Mudança climática? Sim. Mas a falta de previsão, a ignorância, a cobiça e o fundamentalismo neoliberal contribuíram muito para configurar esta “tempestade perfeita”.
Carlos Amorín
20 | 5 | 2024
Foto: Anselmo Cunha – AFP
A presença de um sistema de alta pressão no centro-sul do país impediu que fenômenos meteorológicos comuns nesta época fluíssem e ficaram parados sobre o RS. O mal tempo começou dia 28 de abril no norte do Estado com fortes chuvas e vento, e no dia 29 a situação já tinha se estendido por quase toda a região.
Em vários pontos do Estado do Rio Grande do Sul (RS) as chuvas acumuladas entre 28 de abril e 2 de maio representaram entre 500 e 700 mm, o que corresponde a um terço da média histórica de precipitações para um ano inteiro, e em muitas outras áreas choveu entre 300 e 400 mm.
A chuva extrema atingiu mais de 60% do território do Estado. Houve cortes no abastecimento de água potável em mais de 640 mil residências e cerca de 500 mil clientes ficaram sem energia elétrica. Foram bloqueadas estradas estaduais em dezenas de pontos, devido a deslizamentos de terra, enchentes, destruição das calçadas ou queda de barreiras e árvores. Os danos atingiram 334 dos 497 municípios do Estado.
A situação ficou mais grave ainda pelo colapso da represa hidroelétrica 14 de Julho, localizada entre os municípios de Cotiporã e Bento Gonçalves. Outras quatro represas em todo o Estado também correm risco de desabarem.
Na capital, Porto Alegre, o Centro Histórico e vários outros bairros sofreram um extenso alagamento, resultando em ruas bloqueadas e pessoas isoladas. Dia 5 de maio a enchente do Guaíba, rio que contorna Porto Alegre, atingiu 5,33 m, superando o recorde histórico das enchentes de 1941. O Aeroporto Internacional Salgado Filho ficou inundado e foram canceladas suas operações, e as pontes sobre o Guaíba e as avenidas Castelo Branco e Assis Brasil tiveram que ser fechadas, interrompendo as principais conexões da capital com o resto do Estado.
O governador de direita do RS, Eduardo Leite, liderou em 2019 um movimento no parlamento, conseguindo privatizar empresas estratégicas que eram públicas como as de energia e agua, e além disso destruiu o Código Ambiental do Rio Grande do Sul, vigente desde 2000, fruto de nove anos de debate com a participação de personalidades importantes no âmbito do meio ambiente, como o célebre agrônomo e ex-secretário do Meio Ambiente José Lutzenberger, premiado com o “Prêmio Nobel Alternativo” pela sua trajetória como ecologista pioneiro.
Leite e seus asseclas desvirtuaram 480 artigos desse Código, o que de fato significou um desmonte das proteções ao meio ambiente em benefício da indústria, da mineração, do agronegócio, e no geral dos grandes empreendimentos privados que mais geram poluição e contribuem à mudança climática.
O projeto do governador foi aprovado em tempo recorde, instrumentando uma verdadeira política contrária ao meio ambiente. Algumas de suas medidas fundamentalistas: privatização de bens comuns como a água e a energia; entrega de ativos públicos como a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), a Empresa Estatal de Energia Eléctrica (CEEE), a Companhia de Gás do Rio Grande do Sul (Sulgás); a tentativa de privatizar as principais Unidades de Conservação e o Jardim Botânico; o desmonte de organismos públicos como a Secretaria do Estado do Meio Ambiente (SEMA). A “motosserra” é o slogan do neoliberalismo latino-americano.
Foi cancelado o investimento em obras de manutenção de infraestruturas necessárias para a prevenção de impactos climáticos adversos; foram desmontados departamentos inteiros de cuidado ambiental, reduzindo a quantidade de seu pessoal de trabalho a menos da metade; foi interrompida a participação estadual nos programas de formação ambiental que, sem orçamento, definhou até desaparecer, entre outras medidas de “corte”.
Os mesmos que atuaram com imprudência criminal, contribuindo com seu egoísmo para que fossem dadas as condições para a “tempestade perfeita” de hoje, agora rasgam as vestes, olham para o céu e suplicam: “Deus, porque nos abandonaste”.
O colapso do RS é praticamente total. Nada funciona, e quando o faz é uma gota no oceano. O transporte parado, o comércio fechado, as instituições educativas vazias, as colheitas interrompidas, os silos dos grãos já colhidos estão alagados: o governo federal declarou estado de calamidade em toda a região, o que habilita a liberação de fundos extraordinários para arcar com a ajuda aos danificados e a reconstrução das infraestruturas danificadas.
Foi anunciada uma primeira importação de um milhão de toneladas de arroz, e centenas de milhares de toneladas do clássico feijão, bases da alimentação popular.
A mobilização das Forças Armadas é gigantesca, desde pessoal da Infantaria até grandes naves da Marinha que socorrem os portos do RS para transportar alimentos, estações de tratamento de água, helicópteros, drones, etc., e eventualmente, albergar deslocados.
Muitos Estados vizinhos enviam alimentos, ambulâncias, barracas, água potável, agasalhos, roupa, em uma grande mobilização solidária de um país comovido ante a catástrofe. Os países vizinhos também estão reagindo, enviando desde helicópteros até leite em pó e mantimentos em geral.
Conforme a previsão do tempo, a chuva e as tempestades ainda vão continuar por três ou quatro dias, e inclusive se a água não subir mais ainda do que o nível atual, serão necessários pelo menos 10 dias para serem totalmente retirados das áreas inundadas. Depois serão feitas as tarefas de limpeza e reconstrução cuja duração e custo, por enquanto, ninguém tem coragem de fazer uma previsão.
Quando a água voltar a seu curso e os territórios novamente reconhecerem a si mesmos, virá o tempo do fio e do machado, para que prestem contas ante a sociedade os criminosos que colaboraram para que a catástrofe fosse possível. Eles têm sangue em suas mãos.