Onde a Esperança se Refugiou
O esquecimento está cheio de memória

No edifício da Usina de Gasômetro, os versos de Mario Benedetti encontram a frase de Carlos Drummond de Andrade, que se topa com o poema de Ferreira Gullar. E há mais: passam por ali as palavras de Chico Buarque, de José Saramago, de Alceu Amoroso Lima.
Em prosa ou poesia, evocam outro tempo, desafiam o esquecimento e a ignorância. Recordam o exílio e a repressão, denunciam a censura, aplaudem a coragem. A exposição “Onde a esperança se refugiou”, que ficou até domingo 5 no Gasômetro, apresenta em depoimentos as histórias da América Latina durante os anos de concomitantes ditaduras militares, e mostra Porto Alegre como ponto importante da resistência no Cone Sul.

Organizada pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), a mostra ocupou o andar térreo da Usina do Gasômetro desde o dia 25 de abril. Em seis salas, os painéis, fotografias e depoimentos, em áudio e vídeo, contemplam cinco eixos: “Contexto político latino-americano e brasileiro”, “A ditadura militar no Brasil”, “O Movimento de Justiça e Direitos Humanos”, “O processo de transição política no Cone Sul” e “Políticas da memória”.
O MJDH surge em Porto Alegre no momento mais crítico para a política dos países do sul do continente, eram os anos 1970, quando, de forma simultânea, ditaduras militares governavam Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.

Mesmo que a atuação tenha sido forçadamente clandestina, o Movimento auxiliou centenas de militantes políticos latino-americanos no Rio Grande do Sul. Como Porto Alegre assumia posição estratégica em termos geográficos, muitos passaram pela cidade antes de rumar ao exílio.
Eram tupamaros saídos de Montevidéu e do interior uruguaio, montoneros impedidos de permanecer em Buenos Aires e militantes do Movimento de Izquierda Revolucionária de Chile (MIR) perseguidos após a queda de Salvador Allende.
Em depoimento exibido na exposição, o presidente do MJDH, Jair Krischke, diz que em algum momento a organização parecia “uma agência de viagens”, e que felizmente aquelas excursões carregadas de perigos alcançavam o destino final.
Durante todo o percurso da mostra, que se valeu dos arquivos do próprio MJDH e de acervos públicos de Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires, aparecem informações sobre a atuação do regime e a resistência a ele no Rio Grande do Sul.
Até hoje são pouco difundidas histórias como as da cidade gaúcha de Três Passos, município do Noroeste do estado que vivenciou duas tentativas de formação de guerrilha durante a ditadura. Da mesma forma, são apontados os lugares de Porto Alegre que serviram como palco para a atuação da violência de Estado.
Além do Palácio da Polícia, da Ilha do Presídio e do próprio Presídio Central, a cidade também registrou a existência de um dos primeiros centros de detenção clandestina do continente, o “Dopinha”, na rua Santo Antônio, em pleno bairro Bom Fim.
“Nossa estrutura era artesanal, sem as facilidades de hoje”, conta Jair Krischke

Jair Krischke conversou com o Sul21 na Usina do Gasômetro. Ele lembra que, embora em Porto Alegre os militantes – “pouco mais de cem” – corressem riscos enormes como em outras cidades do continente, a sede “não poderia ser em outro lugar”.
Como a organização estava em permanente contato com representantes da militância de outros países, era grande a cautela para evitar a presença de infiltrados da Operação Condor entre os membros. De modo que diálogo franco só ocorria depois que a apresentação fosse feita a partir de uma senha previamente combinada, prática comum naqueles tempos.
Krischke lembra a história de um uruguaio alto, muito sério e de voz rouca que buscou contato em Porto Alegre – e que não conhecia a senha necessária para o encontro. “Tive quase certeza de que era um policial”, conta Jair. O homem passou uma semana insistindo na conversação, que finalmente aconteceu. Desde Barcelona, um companheiro de militância alertou o Movimento de que o homem havia saído com tanta pressa de Montevidéu que não houve tempo de combinar o sinal. “Hoje, já se pode falar: a senha daquela vez era “quanto mais luz, mais sombra”, recorda Jair.

No final da tarde da última sexta-feira, a organização da mostra recebeu o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT), que militou contra a ditadura militar no Rio Grande do Sul.
Fortunati acompanhou, sala por sala, os documentos exibidos na exposição ao lado de Jair Krischke. Quando perguntado pelo Sul21 sobre as heranças da ditadura que pode ter encontrado em Porto Alegre, o prefeito afirmou que “a ditadura marca principalmente o seu povo, é um período em que vidas foram ceifadas, vozes caladas, sindicalistas foram presos, pessoas desapareceram. Isso tem influência nas gerações futuras, e muitos jovens que nasceram durante a ditadura não tiveram possibilidade de entender o que estava acontecendo e se acomodaram ao longo do tempo. A cidade ainda sofre com isso.”
José Fortunati acrescentou ainda que a Prefeitura de Porto Alegre tem interesse em “mapear” os lugares que serviram como centros de repressão na cidade: “estamos resgatando locais onde fatos aconteceram, e queremos marcar os locais com a sua história.
Não para que os lugares sejam hostilizados, mas na verdade para resgatar como símbolo histórico, para que a gente lembre que em Porto Alegre a ditadura foi cruel, que causou danos a gerações inteiras e trouxe prejuízos enormes à democracia”..